Lembro aquela casa branca, um bangalô situado bem próximo à
ponta da Lagoa, sempre de portas abertas para acolher quem chegava de viagem e
aportava ali pertinho, recém-chegado de viagem e faminto. Esse local era uma
espécie de aduana da qual Zé Lopinho fora designado fiscal pelas autoridades competentes em São Francisco do Sul. A casa era propriedade da
família Moura. O casal, Sinhá Antonica, Antônia Higina da Graça Moura, e seu
marido José Antônio Lopes de Moura, popularmente conhecido como Zé Lopinho, mais
seus seis filhos. Na frente da casa havia uma calçada e alguns degraus. Ali vinham
sentar, à noite, as esposas dos pescadores que traziam seus filhos para brincar
e tomar um ar fresco nas noites quentes de verão. Essa casa também abrigou a sede da prefeitura, quando da primeira tentativa de emancipar o Distrito de Barra Velha, do município de Araquari.
De toda a família, conheci apenas minha avó, Sinhá Antonica,
meu tio Odorico, o mais velho dos seis irmãos e meu pai, o mais novo da
família. Quando minha avó partiu, em 1954, aos noventa e quatro anos, eu tinha
apenas quatro. Lembro-me perfeitamente desse dia. Vi meu tio chorar sentado na
nossa cozinha. Mas minha lembrança da amada avozinha é anterior a isso. Sempre recostada na
cama a nos ensinar o ABC... Eu gostava de ficar com ela. Usava um lenço, de
estampa miudinha em um fundo preto, na cabeça, amarrado embaixo do queixo. De
vez em quando, levantava a lateral do lenço com uma das mãos e com a outra,
arrumava o cabelo para que não parecesse espalhado. Eu gostava de vê-la fazer
isso. Até a imitava. Ela morava conosco desde que ficou bem velhinha. Conseguia
se deslocar pela casa e fazia as refeições conosco, à mesa. Até o dia em que
desceu a escada da cozinha que dava acesso ao quintal para pitar seu inseparável
cachimbo, caiu e quebrou o fêmur. Nunca mais saiu da cama. Não lembro de vê-la
triste. Um belo exemplo de como enfrentar adversidades.
Mas hoje vou escrever sobre meu tio Odorico. Meu pai contava
que o seu irmão tinha o cavalo mais bonito, o mais cobiçado, enfim, o melhor
cavalo da região. Nesse tempo era o único meio de transporte. Como montaria ou
puxando as carroças. Em um certo dia, ele montou, provavelmente escondido, o
tão famoso cavalo do irmão e rumou para fora da propriedade. O bicho estranhou
o cavaleiro, foi em direção à porteira fechada, deu uma freada brusca e saltou
o obstáculo com o cavaleiro atônito em cima. Experiência tão inesquecível
quanto surpreendente. Lembranças de uma juventude privilegiada.
Tio Odorico tornou-se um homem e foi para Joinville tentar a
vida. Lá casou-se com minha tia Lídia com quem teve cinco filhos. O casal
adotou mais um. Eu o vi por ocasião do falecimento de minha avó e depois não
tenho lembrança de tê-lo visto em minha casa, o que começou a ocorrer quando eu
já estava grandinha e ele bastante idoso. Aparecia de vez em quando e ia direto
para o porto das canoas a fim de conversar com os pescadores. Entre uma
conversa e outra, um gole da “branquinha “ e não via passar o tempo. Nós, em
casa, costumávamos almoçar exatamente ao meio dia e titio chegava sempre depois
das treze horas, já bem “alegre”, com uma porção de peixes, todos muito
pequenos ainda necessitando limpar e fritar para o seu almoço. Minha mãe ficava
um tanto irritada quando isso acontecia. Também, pudera! Via de regra, nós já
estávamos terminando nossa refeição sem sequer imaginar que teríamos visita
para almoçar. Um cunhado e tanto!
Certamente ficávamos todos sentados à mesa, em respeito à
visita e por ser o irmão mais velho de nosso pai. Porém a conversa durante a
refeição era um tanto ou quanto desagradável. Ele reservava-se o direito de dar
palpite em nossas vidas. Tudo estava errado. Todos recebiam críticas, mas o
foco principal era sempre o meu irmão Mário. Coitado! Sofria calado e também
meu pai se mantinha em silêncio. Era o irmão mais velho, afinal. Ele não mudava
o tema da conversa em todas as visitas. Meu irmão estava errado, tudo estava
errado e queria a todo custo me levar com ele para Joinville. Eu ficava
apavorada!
Fazia discurso, gesticulava, falava muito alto e o peixe
frito teimava em sair da sua boca. Sempre em tom de crítica à educação que meus
pais nos davam. Hoje até lembro com ternura o único tio paterno que conheci,
mas na época era um pouco difícil entender aquilo que eu achava totalmente
injusto. Com minha mãe, com meu irmão tão amado e com meu pai. Sem falar no
pavor que me causava a ideia de morar com ele e sua família em Joinville. Chegar
para almoçar sem avisar, com peixes para limpar e preparar fora de hora era,
para mim, uma tremenda falta de consideração para falar o mínimo.
Passados tantos anos, consigo entender a lógica de tudo
aquilo e até entender as ótimas intenções de meu tio Odorico. Vejo amor e uma
preocupação paternal nas suas atitudes. Talvez os métodos, na época, me
impactassem um pouco (ou muito rsrsrs). Também as circunstâncias não o
favoreciam. Penso que a “branquinha” agia para desmoralizar seu discurso. Quem sabe
sóbrio ele conseguisse se fazer entender melhor.