terça-feira, 15 de junho de 2021

O cunhado


 

Lembro aquela casa branca, um bangalô situado bem próximo à ponta da Lagoa, sempre de portas abertas para acolher quem chegava de viagem e aportava ali pertinho, recém-chegado de viagem e faminto. Esse local era uma espécie de aduana da qual Zé Lopinho fora designado fiscal pelas autoridades competentes em São Francisco do Sul. A casa era propriedade da família Moura. O casal, Sinhá Antonica, Antônia Higina da Graça Moura, e seu marido José Antônio Lopes de Moura, popularmente conhecido como Zé Lopinho, mais seus seis filhos. Na frente da casa havia uma calçada e alguns degraus. Ali vinham sentar, à noite, as esposas dos pescadores que traziam seus filhos para brincar e tomar um ar fresco nas noites quentes de verão. Essa casa também abrigou a sede da prefeitura, quando da primeira tentativa de emancipar o Distrito de Barra Velha, do município de Araquari.

De toda a família, conheci apenas minha avó, Sinhá Antonica, meu tio Odorico, o mais velho dos seis irmãos e meu pai, o mais novo da família. Quando minha avó partiu, em 1954, aos noventa e quatro anos, eu tinha apenas quatro. Lembro-me perfeitamente desse dia. Vi meu tio chorar sentado na nossa cozinha. Mas minha lembrança da amada avozinha é anterior a isso. Sempre recostada na cama a nos ensinar o ABC... Eu gostava de ficar com ela. Usava um lenço, de estampa miudinha em um fundo preto, na cabeça, amarrado embaixo do queixo. De vez em quando, levantava a lateral do lenço com uma das mãos e com a outra, arrumava o cabelo para que não parecesse espalhado. Eu gostava de vê-la fazer isso. Até a imitava. Ela morava conosco desde que ficou bem velhinha. Conseguia se deslocar pela casa e fazia as refeições conosco, à mesa. Até o dia em que desceu a escada da cozinha que dava acesso ao quintal para pitar seu inseparável cachimbo, caiu e quebrou o fêmur. Nunca mais saiu da cama. Não lembro de vê-la triste. Um belo exemplo de como enfrentar adversidades.

Mas hoje vou escrever sobre meu tio Odorico. Meu pai contava que o seu irmão tinha o cavalo mais bonito, o mais cobiçado, enfim, o melhor cavalo da região. Nesse tempo era o único meio de transporte. Como montaria ou puxando as carroças. Em um certo dia, ele montou, provavelmente escondido, o tão famoso cavalo do irmão e rumou para fora da propriedade. O bicho estranhou o cavaleiro, foi em direção à porteira fechada, deu uma freada brusca e saltou o obstáculo com o cavaleiro atônito em cima. Experiência tão inesquecível quanto surpreendente. Lembranças de uma juventude privilegiada.

Tio Odorico tornou-se um homem e foi para Joinville tentar a vida. Lá casou-se com minha tia Lídia com quem teve cinco filhos. O casal adotou mais um. Eu o vi por ocasião do falecimento de minha avó e depois não tenho lembrança de tê-lo visto em minha casa, o que começou a ocorrer quando eu já estava grandinha e ele bastante idoso. Aparecia de vez em quando e ia direto para o porto das canoas a fim de conversar com os pescadores. Entre uma conversa e outra, um gole da “branquinha “ e não via passar o tempo. Nós, em casa, costumávamos almoçar exatamente ao meio dia e titio chegava sempre depois das treze horas, já bem “alegre”, com uma porção de peixes, todos muito pequenos ainda necessitando limpar e fritar para o seu almoço. Minha mãe ficava um tanto irritada quando isso acontecia. Também, pudera! Via de regra, nós já estávamos terminando nossa refeição sem sequer imaginar que teríamos visita para almoçar. Um cunhado e tanto!

Certamente ficávamos todos sentados à mesa, em respeito à visita e por ser o irmão mais velho de nosso pai. Porém a conversa durante a refeição era um tanto ou quanto desagradável. Ele reservava-se o direito de dar palpite em nossas vidas. Tudo estava errado. Todos recebiam críticas, mas o foco principal era sempre o meu irmão Mário. Coitado! Sofria calado e também meu pai se mantinha em silêncio. Era o irmão mais velho, afinal. Ele não mudava o tema da conversa em todas as visitas. Meu irmão estava errado, tudo estava errado e queria a todo custo me levar com ele para Joinville. Eu ficava apavorada!

Fazia discurso, gesticulava, falava muito alto e o peixe frito teimava em sair da sua boca. Sempre em tom de crítica à educação que meus pais nos davam. Hoje até lembro com ternura o único tio paterno que conheci, mas na época era um pouco difícil entender aquilo que eu achava totalmente injusto. Com minha mãe, com meu irmão tão amado e com meu pai. Sem falar no pavor que me causava a ideia de morar com ele e sua família em Joinville. Chegar para almoçar sem avisar, com peixes para limpar e preparar fora de hora era, para mim, uma tremenda falta de consideração para falar o mínimo.

Passados tantos anos, consigo entender a lógica de tudo aquilo e até entender as ótimas intenções de meu tio Odorico. Vejo amor e uma preocupação paternal nas suas atitudes. Talvez os métodos, na época, me impactassem um pouco (ou muito rsrsrs). Também as circunstâncias não o favoreciam. Penso que a “branquinha” agia para desmoralizar seu discurso. Quem sabe sóbrio ele conseguisse se fazer entender melhor.