segunda-feira, 15 de junho de 2020

O antigo cemitério da lagoa de Barra Velha




Há algum tempo eu vinha querendo escrever sobre esse local que em mim exercia um fascínio sem explicação, mas detinha pouco, ou quase nenhum, conhecimento sobre ele. Até um dia em que uma querida sobrinha me falou sobre uma dissertação de mestrado realizada na Universidade da Região de Joinville que versava sobre o antigo cemitério. Enviou-ma e hoje posso discorrer sobre o assunto com bastante propriedade. A autora dessa preciosidade é minha amiga e conterrânea Angelita Borba de Souza, que fez uma profunda e séria pesquisa ao fazer seu mestrado, sob o nome de: Um patrimônio cultural em conflito. Muito agradecida e devidamente, autorizada pela autora da dissertação, hoje dou início a minha crônica.
A origem do nome, Barra Velha, tem várias explicações, mas, a mais corrente e viável, no meu entender, é aquela que Saint Hilaire cita em seus apontamentos, por ocasião de sua passagem por estas paragens há muito, muito tempo atrás. A barra do rio Itapocu, que dá origem à lagoa, antigamente situava-se na ponta da lagoa, onde hoje existe uma praça, mas se deslocava frequentemente até se fixar, mais ou menos, onde hoje se encontra. E o local ficou, então, conhecido com esse nome. Barra Velha não tem uma data fixada de quando teria começado a sua ocupação. Anotações dão conta de que caçadores e exploradores, de passagem por estas bandas, teriam aqui se fixado já nos séculos XV e XVI. Anteriormente este território era ocupado por índios Guaranis. Açorianos chegaram a partir do século XVIII. Iniciou-se, então, um povoado, um vilarejo de pescadores que se utilizava da lagoa aqui existente e do mar para a sua sobrevivência. A lagoa, além de garantir a sobrevivência das famílias dos pescadores, servia também para deslocamento entre vilas e era navegando por ela que eram conduzidos os mortos para a despedida final.
Atualizo a localização do antigo cemitério, para facilitar a compreensão do leitor. Situa-se às margens da lagoa, no bairro Quinta dos Açorianos, em Barra Velha, bem próximo a uma ponte pênsil ali construída. Cumpre informar que esse bairro existe porque seu território foi totalmente loteado para dar vazão à especulação imobiliária. Inclusive a construção da tal ponte teve a intenção de atrair turistas e fomentar o comércio dos lotes. Foi construída pela iniciativa privada em troca de tributos devidos. O espaço do antigo cemitério encontra-se entre esses inúmeros lotes. Até uma tentativa de aterramento do mesmo já foi feita por ocasião da dragagem da lagoa. A areia retirada começou a ser depositada ali com a intenção de fazer sumir qualquer vestígio que pudesse lembrar que um dia ali foram enterrados corpos de entes queridos, nossos ancestrais e, por certo, viabilizar a comercialização deste também. Felizmente o bom senso de alguns conseguiu embargar esse absurdo.
Barra Velha não possuía cemitério nos primórdios de sua existência. Seus falecidos eram enterrados em Armação (Penha) até, provavelmente, o final do século XVIII, pois há registro do primeiro enterro em janeiro de 1791. Considerado oficialmente como cemitério a partir do ano de 1800, passou a atender as populações de Barra Velha, a população ribeirinha, o Balneário Barra do Sul e Penha.
 No século XVIII começaram a surgir, na região, as epidemias. A denominada Câmara de Sangue (diarreia hemorrágica) vitimou muitos moradores. Sem assistência médica, a febre amarela e a varíola também fizeram vítimas. Meu livre pensar me faz concluir que esse fato foi o grande disparador para que se encontrasse um local adequado, muito longe da população, para enterrar os mortos em Barra Velha vítimas dessas doenças altamente contagiosas e que as autoridades de Penha impediram os enterros em seu cemitério também por medo do contágio. Os escritos de Angelita levaram-me a essa conclusão.
O cortejo era feito em canoas e, quando o falecido tinha uma estatura maior, era necessário que se amarrasse o caixão transversalmente em duas canoas e a navegação feita com todo o cuidado possível. Outras embarcações iam atrás levando familiares e amigos em meio a velas, flores, cantorias e muita tristeza no coração, por, aproximadamente, quatro quilômetros a remo. Mais tarde foi confeccionada uma canoa maior, a chamada defunteira. Era a canoa funerária que, pintada de preto, ficava ancorada às margens da lagoa aguardando a utilização.
Serviço funerário? Nem pensar. Os familiares e amigos providenciavam mortalha e caixão. Havia dois possíveis trajetos de acesso ao cemitério. Pelas águas da lagoa, ou pela praia da península, de carroça, e, na altura do cemitério, se fazia a travessia da lagoa. Em ambas as alternativas, a atuação do pescador se fazia absolutamente necessária. Havia dificuldades com o clima. Vento, frio e chuva traziam transtornos, tanto no transporte, como na abertura da cova, que era feita pelos próprios acompanhantes do féretro. Em tempos de chuva, abrir uma cova na beira da lagoa, fazia surgir água, havendo necessidade de abrir outra em outro local próximo.
Esse cemitério foi desativado em 1929 com a construção de outro no centro da vila. Provavelmente dada a dificuldade para se enterrar um ente querido, os moradores do local não se opuseram à transferência do cemitério da lagoa para o centro, embora haja registros de enterros feitos ali até 1938. Talvez por apego ao local, respeito aos antepassados e o não pagamento de taxas para realizar o enterro. Muitos corpos foram transladados para o novo cemitério. Outros tantos ainda permanecem lá.
Em minha próxima crônica vou abordar as inevitáveis histórias de fantasmas e terror originadas pelo cemitério da lagoa.


Observação importante. Para quem estiver interessado em fazer uma deliciosa leitura desse intrigante assunto, com detalhes, a dissertação de mestrado de Angelita encontra-se na biblioteca da Universidade da Região de Joinville.

domingo, 7 de junho de 2020

Ainda sobre livros




Acredito que todas os leitores compulsivos trazem esse gosto, essa tendência consigo ao nascer. Despertar e fazer crescer dentro de nosso ser o gosto pela leitura é um privilégio, creio, de poucos.
O lugar maravilhoso onde nasci oferecia a seus moradores, uns poucos veranistas e outros tantos visitantes uma natureza farta e exuberante em beleza, mas os recursos, em se tratando de educação, eram muito precários. Por conta disso, minha irmã e eu, aos 11 e 13 anos, tivemos que dar continuidade a nossos estudos em uma cidade próxima, Jaraguá do Sul, onde existia um internato de freiras alemãs da Ordem da Divina Providência. Logo nos primeiros dias, fazendo o reconhecimento do local, fui apresentada à biblioteca. Qual não foi minha alegria, espanto e admiração ao encontrar uma sala, cujas paredes eram cobertas por estantes lotadas de livros de todas as espécies. Nunca poderia imaginar que realmente existisse, de verdade, todo aquele tesouro. E, claro, virei “rata” de biblioteca. Ao longo de minha permanência no colégio devorei toda a obra ali disponível de M. Delly, romances para adolescentes que eu julgava serem escritos por uma mulher e somente há pouco tempo vim a saber que aquele M. não era de Madame. Esse era apenas o pseudônimo de um casal e escritores franceses. Fiquei triste, decepcionada. Estava certa de que quem escrevia aquelas lindas histórias que povoavam meus devaneios de adolescente romântica era uma amável senhora com os cabelos grisalhos atados à nuca. Ai... a imaginação fértil da garota sonhadora que fui um dia.
Nesse mesmo tempo e espaço, li quase toda a obra de José de Alencar com o qual me identifiquei muito, embora lírico e muito descritivo. Para mim aquela era a sala da magia e esse autor me conduzia a cenários inimagináveis, bem fora da realidade de então.
Tenho bastante simpatia por autores estrangeiros como Gabriel Garcia Marquez, Isabel Allende ou Ernest Hemingway, só para citar alguns, mas, como autêntica patriota ufanista até, meu interesse fica totalmente voltado para a maravilhosa literatura brasileira.
Uma obra lida que se destaca entre todas é Grande sertão: veredas, escrita por João Guimarães Rosa. Não tenho o hábito de reler os livros que leio, mas a leitura desse me foi tão prazerosa que, após ler a última frase da obra, voltei para a primeira página e iniciei a releitura imediatamente. O melhor de todos, sem dúvidas!
Outra obra, cuja leitura deixou marcas foi O cortiço de Aluísio de Azevedo. Ainda trago comigo os personagens mais marcantes dessa narrativa: Rita Baiana e João Romão. É bem provável que essa seja a minha próxima releitura.
E o que falar de Jorge Amado, cuja fase engajada politicamente lhe rendeu suas melhores obras. Capitães da areia é um belo exemplo disso. Pedro Bala, João Grande, Pirulito, Sem Pernas e os outros dão aulas de ética quando juntos ou individualmente, por mais paradoxal que possa parecer, por serem eles, os capitães da areia, um grupo de menores delinquentes. O autor manobra seus personagens de maneira sutil, às vezes nem tanto, e faz sua contundente crítica social. Não se pode dizer, no entanto, que suas obras da fase mais, digamos assim, comercial, não proporcionem momentos de delicioso entretenimento. Em todas há sempre, pelo menos, um personagem passando grandes lições de civismo e cidadania.
Érico Veríssimo, que conheci quando já mais madura, conseguiu me arrebatar com sua narrativa forte e tantas vezes misturada à realidade, sobretudo, política.
E aí vão tantos outros, não menos importantes e arrebatadores. Se me alongo mais, torno a leitura enfadonha e prezo muito os meus queridos leitores. Pretendo voltar ao assunto, sempre que me sentir empolgada.