Há algum tempo eu vinha querendo escrever sobre esse local
que em mim exercia um fascínio sem explicação, mas detinha pouco, ou quase
nenhum, conhecimento sobre ele. Até um dia em que uma querida sobrinha me falou
sobre uma dissertação de mestrado realizada na Universidade da Região de
Joinville que versava sobre o antigo cemitério. Enviou-ma e hoje posso
discorrer sobre o assunto com bastante propriedade. A autora dessa preciosidade
é minha amiga e conterrânea Angelita Borba de Souza, que fez uma profunda e
séria pesquisa ao fazer seu mestrado, sob o nome de: Um patrimônio cultural em
conflito. Muito agradecida e devidamente, autorizada pela autora da
dissertação, hoje dou início a minha crônica.
A origem do nome, Barra Velha, tem várias explicações, mas,
a mais corrente e viável, no meu entender, é aquela que Saint Hilaire cita em seus
apontamentos, por ocasião de sua passagem por estas paragens há muito, muito
tempo atrás. A barra do rio Itapocu, que dá origem à lagoa, antigamente
situava-se na ponta da lagoa, onde hoje existe uma praça, mas se deslocava
frequentemente até se fixar, mais ou menos, onde hoje se encontra. E o local
ficou, então, conhecido com esse nome. Barra Velha não tem uma data fixada de
quando teria começado a sua ocupação. Anotações dão conta de que caçadores e
exploradores, de passagem por estas bandas, teriam aqui se fixado já nos
séculos XV e XVI. Anteriormente este território era ocupado por índios
Guaranis. Açorianos chegaram a partir do século XVIII. Iniciou-se, então, um
povoado, um vilarejo de pescadores que se utilizava da lagoa aqui existente e
do mar para a sua sobrevivência. A lagoa, além de garantir a sobrevivência das
famílias dos pescadores, servia também para deslocamento entre vilas e era
navegando por ela que eram conduzidos os mortos para a despedida final.
Atualizo a localização do antigo cemitério, para facilitar a
compreensão do leitor. Situa-se às margens da lagoa, no bairro Quinta dos
Açorianos, em Barra Velha, bem próximo a uma ponte pênsil ali construída.
Cumpre informar que esse bairro existe porque seu território foi totalmente
loteado para dar vazão à especulação imobiliária. Inclusive a construção da tal
ponte teve a intenção de atrair turistas e fomentar o comércio dos lotes. Foi construída
pela iniciativa privada em troca de tributos devidos. O espaço do antigo
cemitério encontra-se entre esses inúmeros lotes. Até uma tentativa de
aterramento do mesmo já foi feita por ocasião da dragagem da lagoa. A areia retirada
começou a ser depositada ali com a intenção de fazer sumir qualquer
vestígio que pudesse lembrar que um dia ali foram enterrados corpos de entes
queridos, nossos ancestrais e, por certo, viabilizar a comercialização deste
também. Felizmente o bom senso de alguns conseguiu embargar esse absurdo.
Barra Velha não possuía cemitério nos primórdios de sua
existência. Seus falecidos eram enterrados em Armação (Penha) até, provavelmente,
o final do século XVIII, pois há registro do primeiro enterro em janeiro de
1791. Considerado oficialmente como cemitério a partir do ano de 1800, passou a
atender as populações de Barra Velha, a população ribeirinha, o Balneário Barra
do Sul e Penha.
No século XVIII
começaram a surgir, na região, as epidemias. A denominada Câmara de Sangue
(diarreia hemorrágica) vitimou muitos moradores. Sem assistência médica, a
febre amarela e a varíola também fizeram vítimas. Meu livre pensar me faz
concluir que esse fato foi o grande disparador para que se encontrasse um local
adequado, muito longe da população, para enterrar os mortos em Barra Velha
vítimas dessas doenças altamente contagiosas e que as autoridades de Penha
impediram os enterros em seu cemitério também por medo do contágio. Os escritos
de Angelita levaram-me a essa conclusão.
O cortejo era feito em canoas e, quando o falecido tinha uma
estatura maior, era necessário que se amarrasse o caixão transversalmente em
duas canoas e a navegação feita com todo o cuidado possível. Outras embarcações
iam atrás levando familiares e amigos em meio a velas, flores, cantorias e
muita tristeza no coração, por, aproximadamente, quatro quilômetros a remo. Mais
tarde foi confeccionada uma canoa maior, a chamada defunteira. Era a canoa
funerária que, pintada de preto, ficava ancorada às margens da lagoa aguardando
a utilização.
Serviço funerário? Nem pensar. Os familiares e amigos
providenciavam mortalha e caixão. Havia dois possíveis trajetos de acesso ao cemitério.
Pelas águas da lagoa, ou pela praia da península, de carroça, e, na altura do
cemitério, se fazia a travessia da lagoa. Em ambas as alternativas, a atuação
do pescador se fazia absolutamente necessária. Havia dificuldades com o clima. Vento,
frio e chuva traziam transtornos, tanto no transporte, como na abertura da
cova, que era feita pelos próprios acompanhantes do féretro. Em tempos de
chuva, abrir uma cova na beira da lagoa, fazia surgir água, havendo necessidade
de abrir outra em outro local próximo.
Esse cemitério foi desativado em 1929 com a construção de outro
no centro da vila. Provavelmente dada a dificuldade para se enterrar um ente
querido, os moradores do local não se opuseram à transferência do cemitério da
lagoa para o centro, embora haja registros de enterros feitos ali até 1938. Talvez
por apego ao local, respeito aos antepassados e o não pagamento de taxas para
realizar o enterro. Muitos corpos foram transladados para o novo cemitério. Outros
tantos ainda permanecem lá.
Em minha próxima crônica vou abordar as inevitáveis histórias
de fantasmas e terror originadas pelo cemitério da lagoa.
Observação importante. Para quem estiver interessado em
fazer uma deliciosa leitura desse intrigante assunto, com detalhes, a dissertação de mestrado de
Angelita encontra-se na biblioteca da Universidade da Região de Joinville.
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