terça-feira, 11 de maio de 2021

A despedida da Lucinda

 

 

Eram três irmãs, Brandina, Francisca e Lucinda, a mais longeva. Havia também o Antônio Clemente, talvez o mais velho dos irmãos, a quem meu pai dava assistência nas horas de necessidade. Aliás, assistia aos quatro. Tinham traços típicos dos índios Guaranis. A cor da pele muito morena e os cabelos bem lisos. Não descarto a possibilidade de haver laços de parentesco com a família de meu pai. Muito me orgulho disso. Infelizmente não tínhamos muito contato, quase nenhum, por isso, praticamente nada sei sobre eles.

O Antônio Clemente foi autor de um gesto que ficará para sempre gravado em minha memória. Quando meu pai faleceu, o guardamento do corpo foi feito em casa, como era costume na época. Como era uma pessoa bem relacionada no lugar, a sala estava cheia de pessoas que vieram para dar seu último adeus a ele. De repente, irrompe na sala, visivelmente transtornado, o amigo Antônio. Chapéu desabado nas mãos, usava sua melhor roupa para se despedir de seu protetor. Dirigiu-se aos pés do caixão, ali se ajoelhou e, em copioso pranto pôs-se a fazer suas preces. Muita emoção causou esse seu gesto naquele momento. Muita emoção me causa registrar aqui, neste momento.

De tempos em tempos, sempre no momento em que estávamos à mesa almoçando, ouvíamos batidinhas muito suaves na porta lateral da cozinha. Quase em uníssono, dizíamos: “As meninas”, era como as chamávamos. Meu pai ia atender e, ao abrir a porta, lá estavam as três. Mãos entrelaçadas, esfregadas nervosamente umas nas outras, mostravam timidez e humildade extremas. Elas vinham, a pé, da Itajuba, um bairro não muito próximo, em casos de muita necessidade, em busca de alimento. Nem de longe lembravam aquelas pessoas que criam dependência e vivem da caridade de quem os possa ajudar. Ali em casa almoçavam e ao voltar para casa levavam as sacolas e os braços cheios de alimentos, que serviriam para alimentá-las por um bom tempo, levavam também algum dinheiro para gastos imprevistos. As três eram muito delicadas. Quase não se podia ouvir o que diziam. Muito doces.

Enfim, todos os irmãos partiram desta vida em circunstâncias, para mim desconhecidas, com exceção da Lucinda, que, sozinha, passou a morar com parentes próximos. Até o dia em que, decorrente de problemas naturais pela idade avançada, adoeceu e precisou ser hospitalizada. Morava em Barra Velha e foi internada em um hospital de Joinville. Por mais que esforços fossem envidados para que ela recuperasse a saúde, não resistiu e veio a falecer. O próprio hospital avisou a família e transportou o corpo para Barra Velha, deixando o caixão na casa dos parentes, com a recomendação expressa de que, em hipótese nenhuma, o caixão poderia ser aberto.

Os parentes, por sua vez, lutavam com dificuldades para sobreviver e, assustados, ficaram perdidos, sem saber o que fazer. Não tiveram dúvidas em recorrer à minha irmã Tute que sabiam morar ali perto. Assim fizeram. Esta também não reunia condições de sozinha tomar qualquer providência. Acionou imediatamente as irmãs mais novas. A Graça e eu. Meu cunhado, marido da Tute, tinha um carro grande, uma Caravan, mas não estava em casa e ela não sabia dirigir. Fui dirigindo e fomos as três rumo ao velório. Chovia havia dias e o terreno encontrava-se encharcado. Em decorrência disso, a frente da casinha simples transformara-se em um pequeno pântano preto, cor da terra na região. O acesso à casa, sem cair no lodo, era feito por cima de estreitas tábuas de madeira. Precisava ter um certo equilíbrio para evitar o desastre.

Contornadas as dificuldades, entramos na casinha. O diminutivo é literal, isto é, na sala mal cabia o caixão com o corpo da pobre Lucinda dentro. Esprememo-nos no que sobrava de espaço e por ali ficamos longo tempo, aproveitando para combinar com os parentes os detalhes do enterro. Assumimos o compromisso de estar lá no dia seguinte, na hora combinada, para conduzir o caixão até o cemitério. Havia um detalhe muito importante. Nenhuma de nós três tinha qualquer tipo de experiência com os protocolos de um enterro. Deixamos isso tudo para resolver na hora. A noite já ia avançada quando fomos para nossas casas.

Na manhã seguinte, conforme prometido, na hora combinada estávamos as três irmãs a postos para realizar o féretro. Fomos recebidas por um dos parentes que, aflito, contou-nos que um dos presentes não conseguira dominar a curiosidade e abrira o caixão! Tentaram impedir, alegando que poderia ser “doença pegadiça” (contagiosa) o que tinha levado a Lucinda à morte. Foram voto vencido. Qual não foi a surpresa! O corpo estava nu, embrulhado apenas em um pano branco. Deduz-se daí que a grande preocupação das pessoas do hospital que trouxeram o corpo e pediram veementemente para que o caixão não fosse aberto, tinha sua origem nas precárias condições em que se encontrava o corpo da pobre velhinha. Bastante revoltante mesmo.

Passada a revolta pelo acontecido, seguramos as alças do caixão para levá-lo até o carro do meu cunhado que funcionaria como carro fúnebre. As três irmãs, uma em cada alça e o parente João na quarta alça. E agora? Quem conhecia os protocolos de sepultamento? Ninguém! O que sai primeiro da casa? Os pés, ou a cabeça da falecida? Com o devido perdão da querida Lucinda, ali começou a parte hilária da história. Não lembro como resolvemos o impasse. Provavelmente saiu antes o que estava mais perto da porta porque não havia espaço suficiente na sala para virar o caixão, caso fosse necessário. Para chegar até o carro, precisaríamos passar com o caixão por aquelas tábuas estreitas, lembram? Lodo preto pelos lados? Pois é... tivemos que optar por escolher onde o terreno estava mais firme, então, revezávamos. Os que seguravam as alças do lado direito iam para o sacrifício na lama preta e os da esquerda ficavam em cima das tabuinhas e vice-versa. Ocorre que, a cada movimento de sobe e desce das tábuas, o corpo da Lucinda banlanlanlanlan rolava para lá e para cá dentro do caixão. Era inevitável. E o riso contido também. Todos sabemos que o choro até se pode conter, mas o riso...

Chegamos finalmente ao carro e seguimos para o cemitério. Lá chegados, cada um pegou a sua referida alça e, nesse momento, veio novamente o impasse para entrar no campo santo. Os pés ou a cabeça? Novamente minha memória me nega o detalhe da solução, mas provavelmente seguimos o primeiro conselho gritado por alguém. Entramos no cemitério e seguimos até o local onde havia sido aberta a cova. Na hora em que o caixão ia baixar à sepultura, pela última vez veio a dúvida: o que fica virado para a porta do cemitério. Os pés, ou a cabeça? Não faço a menor ideia. Todos sabem da dificuldade de segurar o riso, principalmente em momentos delicados e sérios. As três tivemos ataques de riso constrangedores. Ao final, todos estavam rindo conosco.

Confesso que fiz minhas preces, como faço até hoje, pela Lucinda e seus irmãos. Foi bem divertido na época, diversão essa provocada pela nossa ignorância em assuntos funerários. Sinceramente? Não sei ainda a que se dá prioridade nesses momentos. Aos pés, ou à cabeça? Um conhecimento de extrema importância que nunca se sabe quando vai precisar.     

 

 

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