Eram três irmãs, Brandina, Francisca e Lucinda, a mais
longeva. Havia também o Antônio Clemente, talvez o mais velho dos irmãos, a
quem meu pai dava assistência nas horas de necessidade. Aliás, assistia aos
quatro. Tinham traços típicos dos índios Guaranis. A cor da pele muito morena e
os cabelos bem lisos. Não descarto a possibilidade de haver laços de parentesco
com a família de meu pai. Muito me orgulho disso. Infelizmente não tínhamos
muito contato, quase nenhum, por isso, praticamente nada sei sobre eles.
O Antônio Clemente foi autor de um gesto que ficará para
sempre gravado em minha memória. Quando meu pai faleceu, o guardamento do corpo
foi feito em casa, como era costume na época. Como era uma pessoa bem relacionada
no lugar, a sala estava cheia de pessoas que vieram para dar seu último adeus a
ele. De repente, irrompe na sala, visivelmente transtornado, o amigo Antônio.
Chapéu desabado nas mãos, usava sua melhor roupa para se despedir de seu
protetor. Dirigiu-se aos pés do caixão, ali se ajoelhou e, em copioso pranto
pôs-se a fazer suas preces. Muita emoção causou esse seu gesto naquele momento.
Muita emoção me causa registrar aqui, neste momento.
De tempos em tempos, sempre no momento em que estávamos à
mesa almoçando, ouvíamos batidinhas muito suaves na porta lateral da cozinha.
Quase em uníssono, dizíamos: “As meninas”, era como as chamávamos. Meu pai ia
atender e, ao abrir a porta, lá estavam as três. Mãos entrelaçadas, esfregadas
nervosamente umas nas outras, mostravam timidez e humildade extremas. Elas
vinham, a pé, da Itajuba, um bairro não muito próximo, em casos de muita
necessidade, em busca de alimento. Nem de longe lembravam aquelas pessoas que
criam dependência e vivem da caridade de quem os possa ajudar. Ali em casa almoçavam
e ao voltar para casa levavam as sacolas e os braços cheios de alimentos, que
serviriam para alimentá-las por um bom tempo, levavam também algum dinheiro
para gastos imprevistos. As três eram muito delicadas. Quase não se podia ouvir
o que diziam. Muito doces.
Enfim, todos os irmãos partiram desta vida em circunstâncias,
para mim desconhecidas, com exceção da Lucinda, que, sozinha, passou a morar
com parentes próximos. Até o dia em que, decorrente de problemas naturais pela
idade avançada, adoeceu e precisou ser hospitalizada. Morava em Barra Velha e
foi internada em um hospital de Joinville. Por mais que esforços fossem envidados
para que ela recuperasse a saúde, não resistiu e veio a falecer. O próprio
hospital avisou a família e transportou o corpo para Barra Velha, deixando o
caixão na casa dos parentes, com a recomendação expressa de que, em hipótese
nenhuma, o caixão poderia ser aberto.
Os parentes, por sua vez, lutavam com dificuldades para
sobreviver e, assustados, ficaram perdidos, sem saber o que fazer. Não tiveram
dúvidas em recorrer à minha irmã Tute que sabiam morar ali perto. Assim
fizeram. Esta também não reunia condições de sozinha tomar qualquer
providência. Acionou imediatamente as irmãs mais novas. A Graça e eu. Meu
cunhado, marido da Tute, tinha um carro grande, uma Caravan, mas não estava em
casa e ela não sabia dirigir. Fui dirigindo e fomos as três rumo ao velório.
Chovia havia dias e o terreno encontrava-se encharcado. Em decorrência disso, a
frente da casinha simples transformara-se em um pequeno pântano preto, cor da
terra na região. O acesso à casa, sem cair no lodo, era feito por cima de
estreitas tábuas de madeira. Precisava ter um certo equilíbrio para evitar o
desastre.
Contornadas as dificuldades, entramos na casinha. O
diminutivo é literal, isto é, na sala mal cabia o caixão com o corpo da pobre
Lucinda dentro. Esprememo-nos no que sobrava de espaço e por ali ficamos longo
tempo, aproveitando para combinar com os parentes os detalhes do enterro.
Assumimos o compromisso de estar lá no dia seguinte, na hora combinada, para
conduzir o caixão até o cemitério. Havia um detalhe muito importante. Nenhuma
de nós três tinha qualquer tipo de experiência com os protocolos de um enterro.
Deixamos isso tudo para resolver na hora. A noite já ia avançada quando fomos
para nossas casas.
Na manhã seguinte, conforme prometido, na hora combinada
estávamos as três irmãs a postos para realizar o féretro. Fomos recebidas por
um dos parentes que, aflito, contou-nos que um dos presentes não conseguira
dominar a curiosidade e abrira o caixão! Tentaram impedir, alegando que poderia
ser “doença pegadiça” (contagiosa) o que tinha levado a Lucinda à morte. Foram
voto vencido. Qual não foi a surpresa! O corpo estava nu, embrulhado apenas em
um pano branco. Deduz-se daí que a grande preocupação das pessoas do hospital
que trouxeram o corpo e pediram veementemente para que o caixão não fosse aberto,
tinha sua origem nas precárias condições em que se encontrava o corpo da pobre
velhinha. Bastante revoltante mesmo.
Passada a revolta pelo acontecido, seguramos as alças do
caixão para levá-lo até o carro do meu cunhado que funcionaria como carro
fúnebre. As três irmãs, uma em cada alça e o parente João na quarta alça. E agora?
Quem conhecia os protocolos de sepultamento? Ninguém! O que sai primeiro da
casa? Os pés, ou a cabeça da falecida? Com o devido perdão da querida Lucinda,
ali começou a parte hilária da história. Não lembro como resolvemos o impasse. Provavelmente
saiu antes o que estava mais perto da porta porque não havia espaço suficiente
na sala para virar o caixão, caso fosse necessário. Para chegar até o carro,
precisaríamos passar com o caixão por aquelas tábuas estreitas, lembram? Lodo preto
pelos lados? Pois é... tivemos que optar por escolher onde o terreno estava
mais firme, então, revezávamos. Os que seguravam as alças do lado direito iam para
o sacrifício na lama preta e os da esquerda ficavam em cima das tabuinhas e vice-versa.
Ocorre que, a cada movimento de sobe e desce das tábuas, o corpo da Lucinda banlanlanlanlan
rolava para lá e para cá dentro do caixão. Era inevitável. E o riso contido
também. Todos sabemos que o choro até se pode conter, mas o riso...
Chegamos finalmente ao carro e seguimos para o cemitério. Lá
chegados, cada um pegou a sua referida alça e, nesse momento, veio novamente o
impasse para entrar no campo santo. Os pés ou a cabeça? Novamente minha memória
me nega o detalhe da solução, mas provavelmente seguimos o primeiro conselho gritado por
alguém. Entramos no cemitério e seguimos até o local onde havia sido aberta a cova. Na hora
em que o caixão ia baixar à sepultura, pela última vez veio a dúvida: o que
fica virado para a porta do cemitério. Os pés, ou a cabeça? Não faço a menor ideia. Todos sabem da
dificuldade de segurar o riso, principalmente em momentos delicados e sérios. As
três tivemos ataques de riso constrangedores. Ao final, todos estavam rindo
conosco.
Confesso que fiz minhas preces, como faço até hoje, pela
Lucinda e seus irmãos. Foi bem divertido na época, diversão essa provocada pela
nossa ignorância em assuntos funerários. Sinceramente? Não sei ainda a que se
dá prioridade nesses momentos. Aos pés, ou à cabeça? Um conhecimento de extrema
importância que nunca se sabe quando vai precisar.
Que beleza de história.
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado.
ResponderExcluirAguarde. Vem mais por aí!!
Obrigada!