Cabe-me, neste momento, fazer uma importante menção aos
canteiros de hortênsias que ladeavam a entrada da casa, tão cuidadosamente
cultivados por minha mãe. Eram tão lindas essas hortênsias a ponto de hoje eu
ter certeza de que elas floresciam o ano inteiro. Coisas da minha imaginação.
Gosto muito dessa flor. Deve ser por causa dos canteiros da minha infância.
Estávamos entrando na cozinha, lembram? Era enorme! Ocupava
toda a extensão da largura da casa e devia ter, por sua vez, de três a quatro
metros de largura. Entrava-se pela porta da sala, que ficava mais à esquerda.
Logo ali estava um grande fogão a lenha, onde minha mãe, ou a dona Isabel
preparavam os quitutes. E que quitutes! E os gatos deitavam-se na beirada, nos
dias frios de inverno. Ali minha mãe costumava colocar pequenos caixotes de
sabão para nos sentarmos e nos aquecermos depois do banho. Nunca ninguém se
queimou, felizmente.
Caminhando para a direita, havia de um lado a pia e do outro
a máquina de costura da minha mãe. Havia também uma outra máquina de costura
mais antiga, sem uso. Nessa brincávamos de carrinho no pedal ou eu treinava a
costura, contornando as figuras das cabeças enormes das Garotas de O Cruzeiro.
Mundlos era a marca dessa máquina. Minha mãe usava a Singer, ou Elgin mais nova
e moderna.
Adiante estava a mesa bem grande onde todos nos acomodávamos
para as refeições. Ninguém sentava à mesa antes de meu pai, como também ninguém
se servia antes dele. Coisas de um patriarcado, em que o pai era um militar
reformado. Para ocupar os lugares à mesa, havia hierarquia. O pai na cabeceira,
a mãe ao lado direito do pai, depois vinham os irmãos mais velhos até chegar na
caçula. Eu. Nunca me senti diminuída ou em desvantagem por causa disso. Era
muito natural. Quando havia visita para alguma refeição, ocupava o lugar do
irmão mais velho, à esquerda do pai.
Há uma passagem divertida sobre isso. Numa certa noite, meu
pai recebeu a visita de um político na hora em que íamos jantar. E não tinha
essa história de “vão comendo que eu já venho...” Ficamos esperando meu pai
para nos sentarmos para jantar. A visita não ia embora e a fome nos castigava.
Fizemos, então, aquela simpatia de colocar uma vassoura com as cerdas para cima
e um garfo enfiado nessas cerdas. Dizia a lenda que essa prática fazia com que
a visita fosse embora logo. Não deu certo dessa vez. E pior. Meu pai, como o
deputado não fosse embora e a fome estivesse apertando seu estômago, sem alternativa,
o convidou para jantar, convite que foi aceito imediatamente. E vieram os dois
para a cozinha, sem ao menos dar tempo de tirarmos a vassoura. O deputado na
frente, abriu a porta e a vassoura lhe caiu nos pés. Constrangimento total, sem
poder dar risada, mas a vontade era tanta, que não vi como minha mãe disfarçou
a situação embaraçosa. Se ele percebeu, foi elegante e não demonstrou nada.
Essa história de simpatia... melhor não confiar.
Pela janela do lado esquerdo da mesa, podia-se visualizar os
fundos do quintal e aquela citada aroeira que recebia os sabiás famintos e eram
abatidos para serem servidos como canja no jantar. Esse procedimento era
bastante esporádico, mas muito marcante para mim. Finalizando o espaço da
cozinha havia uma janela que se abria para a ruazinha, hoje Rua Rio de Janeiro.
Na lateral, havia a porta do nosso quarto azul e ao lado, a escada que levava
ao sótão.
Ah, o sótão!... Era um espaço enorme em que, somente uma
parte possuía assoalho. Sem janelas, nem claraboia, chegava a provocar um certo
temor. Até porque, quando meus pais viajavam ou saíam para demorar mais, era
bem lá que ficávamos com as meninas que vinham com sua mãe posar em nossa casa
para nos fazer companhia. Elas dormiam ali no sótão e, depois do jantar, tinham
início as narrativas de histórias de terror, na maioria fatos reais, segundo
elas, com personagens do folclore brasileiro. Boitatá, Mula sem cabeça, Saci e
Lobisomem, que vinham depois povoar nossos pesadelos. Mas durante o dia era
palco das brincadeiras de boneca ou teatro.
Ali existiam, para mim, tesouros inimagináveis. Pilhas, maiores
do que eu, de revistas. O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos e as Seleções do
Reader’s Digest, para o meu pai. Era a sua outra comunicação com o mundo,
depois do rádio. Para minha irmã mais velha, as proibitivas revistas de
fotonovelas. Para meu irmão, os gibis e para mim e minha irmã, as historinhas
em quadrinhos da Disney, Bolinha, Luluzinha, e todas as outras que meu pai
encontrava na banca quando ia para Joinville. Trazia também livros para mim,
revistas e aquarela para minha irmã, que gostava de pintar e meu irmão ganhava muito Ringo Kid, Roy
Rogers e tantos outros. Eu lia tudo. Até as fotonovelas eu lia, escondido.
Meu pai tinha um rádio de cabeceira, bem grande, para ouvir
as primeiras notícias do dia. Passado o noticiário, vinha a cantoria de música
caipira. Lindas e apaixonadas letras entoadas em melodias não menos agradáveis.
Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho e vai por aí. Logo em seguida todos
levantávamos para saborear o café da manhã e se podia, então, ouvir o Lori e o
Amazor, filhos do compadre Bagrinho pescador (desculpem, não sei o nome dele) passar
pela ruazinha cantando, a plenos pulmões, as mesmas músicas ouvidas minutos
antes. Gostosa memória.
Fecha-se aqui a janela da minha memória, através da qual
pude enxergar nitidamente e fazer relatos deliciosos do meu cantinho no mundo. Sei
que me estendi e, por isso, me penitencio junto a meus leitores. Tenho ainda
muitas histórias para contar e o farei.
Procuro evitar até onde posso as expressões do tipo “ no meu
tempo...” Esse foi meu tempo. Driblei todas as dificuldades e tristezas. Elas aconteceram,
mas as deixarei presas no passado, liberando apenas as alegrias.
Se meu tempo foi melhor, ou pior não sei dizer. Digo apenas
que foi bem diferente. A imensa maioria das crianças da atualidade não se
encaixaria nessa realidade que descrevi. Ganham em tecnologia e perdem em
imaginação, criatividade e contato direto com a natureza. O que fica como
conclusão final é que cada um, a sua maneira, é feliz com o que tem ao alcance
de suas possibilidades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário