domingo, 2 de maio de 2021

Abre-se mais um cantinho na memória... (parte V)


 

Cabe-me, neste momento, fazer uma importante menção aos canteiros de hortênsias que ladeavam a entrada da casa, tão cuidadosamente cultivados por minha mãe. Eram tão lindas essas hortênsias a ponto de hoje eu ter certeza de que elas floresciam o ano inteiro. Coisas da minha imaginação. Gosto muito dessa flor. Deve ser por causa dos canteiros da minha infância.

Estávamos entrando na cozinha, lembram? Era enorme! Ocupava toda a extensão da largura da casa e devia ter, por sua vez, de três a quatro metros de largura. Entrava-se pela porta da sala, que ficava mais à esquerda. Logo ali estava um grande fogão a lenha, onde minha mãe, ou a dona Isabel preparavam os quitutes. E que quitutes! E os gatos deitavam-se na beirada, nos dias frios de inverno. Ali minha mãe costumava colocar pequenos caixotes de sabão para nos sentarmos e nos aquecermos depois do banho. Nunca ninguém se queimou, felizmente.

Caminhando para a direita, havia de um lado a pia e do outro a máquina de costura da minha mãe. Havia também uma outra máquina de costura mais antiga, sem uso. Nessa brincávamos de carrinho no pedal ou eu treinava a costura, contornando as figuras das cabeças enormes das Garotas de O Cruzeiro. Mundlos era a marca dessa máquina. Minha mãe usava a Singer, ou Elgin mais nova e moderna.

Adiante estava a mesa bem grande onde todos nos acomodávamos para as refeições. Ninguém sentava à mesa antes de meu pai, como também ninguém se servia antes dele. Coisas de um patriarcado, em que o pai era um militar reformado. Para ocupar os lugares à mesa, havia hierarquia. O pai na cabeceira, a mãe ao lado direito do pai, depois vinham os irmãos mais velhos até chegar na caçula. Eu. Nunca me senti diminuída ou em desvantagem por causa disso. Era muito natural. Quando havia visita para alguma refeição, ocupava o lugar do irmão mais velho, à esquerda do pai.

Há uma passagem divertida sobre isso. Numa certa noite, meu pai recebeu a visita de um político na hora em que íamos jantar. E não tinha essa história de “vão comendo que eu já venho...” Ficamos esperando meu pai para nos sentarmos para jantar. A visita não ia embora e a fome nos castigava. Fizemos, então, aquela simpatia de colocar uma vassoura com as cerdas para cima e um garfo enfiado nessas cerdas. Dizia a lenda que essa prática fazia com que a visita fosse embora logo. Não deu certo dessa vez. E pior. Meu pai, como o deputado não fosse embora e a fome estivesse apertando seu estômago, sem alternativa, o convidou para jantar, convite que foi aceito imediatamente. E vieram os dois para a cozinha, sem ao menos dar tempo de tirarmos a vassoura. O deputado na frente, abriu a porta e a vassoura lhe caiu nos pés. Constrangimento total, sem poder dar risada, mas a vontade era tanta, que não vi como minha mãe disfarçou a situação embaraçosa. Se ele percebeu, foi elegante e não demonstrou nada. Essa história de simpatia... melhor não confiar.

Pela janela do lado esquerdo da mesa, podia-se visualizar os fundos do quintal e aquela citada aroeira que recebia os sabiás famintos e eram abatidos para serem servidos como canja no jantar. Esse procedimento era bastante esporádico, mas muito marcante para mim. Finalizando o espaço da cozinha havia uma janela que se abria para a ruazinha, hoje Rua Rio de Janeiro. Na lateral, havia a porta do nosso quarto azul e ao lado, a escada que levava ao sótão.

Ah, o sótão!... Era um espaço enorme em que, somente uma parte possuía assoalho. Sem janelas, nem claraboia, chegava a provocar um certo temor. Até porque, quando meus pais viajavam ou saíam para demorar mais, era bem lá que ficávamos com as meninas que vinham com sua mãe posar em nossa casa para nos fazer companhia. Elas dormiam ali no sótão e, depois do jantar, tinham início as narrativas de histórias de terror, na maioria fatos reais, segundo elas, com personagens do folclore brasileiro. Boitatá, Mula sem cabeça, Saci e Lobisomem, que vinham depois povoar nossos pesadelos. Mas durante o dia era palco das brincadeiras de boneca ou teatro.

Ali existiam, para mim, tesouros inimagináveis. Pilhas, maiores do que eu, de revistas. O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos e as Seleções do Reader’s Digest, para o meu pai. Era a sua outra comunicação com o mundo, depois do rádio. Para minha irmã mais velha, as proibitivas revistas de fotonovelas. Para meu irmão, os gibis e para mim e minha irmã, as historinhas em quadrinhos da Disney, Bolinha, Luluzinha, e todas as outras que meu pai encontrava na banca quando ia para Joinville. Trazia também livros para mim, revistas e aquarela para minha irmã, que gostava de pintar e meu irmão ganhava muito Ringo Kid, Roy Rogers e tantos outros. Eu lia tudo. Até as fotonovelas eu lia, escondido.

Meu pai tinha um rádio de cabeceira, bem grande, para ouvir as primeiras notícias do dia. Passado o noticiário, vinha a cantoria de música caipira. Lindas e apaixonadas letras entoadas em melodias não menos agradáveis. Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho e vai por aí. Logo em seguida todos levantávamos para saborear o café da manhã e se podia, então, ouvir o Lori e o Amazor, filhos do compadre Bagrinho pescador (desculpem, não sei o nome dele) passar pela ruazinha cantando, a plenos pulmões, as mesmas músicas ouvidas minutos antes. Gostosa memória.

Fecha-se aqui a janela da minha memória, através da qual pude enxergar nitidamente e fazer relatos deliciosos do meu cantinho no mundo. Sei que me estendi e, por isso, me penitencio junto a meus leitores. Tenho ainda muitas histórias para contar e o farei.

Procuro evitar até onde posso as expressões do tipo “ no meu tempo...” Esse foi meu tempo. Driblei todas as dificuldades e tristezas. Elas aconteceram, mas as deixarei presas no passado, liberando apenas as alegrias.

Se meu tempo foi melhor, ou pior não sei dizer. Digo apenas que foi bem diferente. A imensa maioria das crianças da atualidade não se encaixaria nessa realidade que descrevi. Ganham em tecnologia e perdem em imaginação, criatividade e contato direto com a natureza. O que fica como conclusão final é que cada um, a sua maneira, é feliz com o que tem ao alcance de suas possibilidades.

 

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