domingo, 28 de setembro de 2014

A lembrança mais antiga





Bastava atravessar a ruazinha de pedras, -  aquela que eu imaginava ser a minha e que eu mandaria ladrilhar com pedrinhas de brilhante -  pular um valo, não muito estreito devido à erosão, e já estávamos na propriedade da minha avó Antonica. Antes de chegar a casa dela, havia, à esquerda, a passagem obrigatória pelo barracão enorme o qual, em outros tempos, servia de abrigo para os cavalos, meio de transporte da família na época. Grandes toras de madeira a sustentar o telhado coberto por telhões antigos, muito antigos. Mas o que atraía a nossa atenção eram os ovinhos de lagartixa, pequenos, bem redondos e muito brancos, que convidavam a brincar, porém, apesar da tentação, tínhamos que deixar exatamente no lugar onde estavam para que mais lagartixinhas pudessem nascer.
Tudo visto revisto, explorado e examinado encaminhávamo-nos, então, à casa da avó já vazia, pois ela, com uma idade bastante avançada e uma perna fraturada, morava em nossa casa. A dela era uma casinha branca, pequena e quadrada com janelas em um tom de marrom, situada bem na esquina com a rua da lagoa. Uma grande área de quintal que ocupava a quadra inteira. Aqueles cômodos abandonados contavam a história tão feliz quanto triste daquela família pioneira.
 Nesse tempo eu tinha apenas quatro anos, mas tenho nitidamente registrado na memória a cama de ferro pintada de azul, a avozinha sentada, recostada em travesseiros a contar histórias e mais histórias. Nós, netinhos, aprendemos o alfabeto com ela, com direito ao ipicilone e ao dublevê. Era a veia da educadora pulsando ainda em seu corpo já tão debilitado.
Minha avó foi uma das primeiras professoras daquela comunidade, por isso mereceu a homenagem de ter uma escola do município com seu nome. Mais tarde, uma de suas filhas lhe seguiu o exemplo e passou a lecionar na comunidade também. Meu pai contava com orgulho que, ainda pequeno, via sua mãe sair para lecionar nos arredores da sede do município montada de lado em seu cavalo e sua saia ampla e rodada a cobrir parte da montaria. Ele contava e eu fechava os olhos para visualizar essa imagem tão linda.
Essa veia do magistério pulsa em muitos de seus descendentes. Há muitos mestres educadores na família atualmente. Eu mesma lhe segui os passos, militei na profissão por anos a fio, sempre atuando com paixão pelo que fazia, dedicando o melhor de mim ao meu trabalho.
A escolinha que levava o nome de minha dedicada avó e situava-se entre as duas entradas para a praia do Grant, na Itajuba, hoje não existe mais. O aumento da demanda de alunos na localidade exigiu que outra escola fosse construída, maior e mais bem equipada. O nome de minha avó, Antônia Higina da Graça Moura, foi substituído pelo nome do pai do prefeito da época.
Não me cabe aqui questionar os critérios que levaram os políticos de então a proceder à mudança dos nomes da escola, mas me reservo o direito de achar que tal atitude configurou-se em uma injustiça sem tamanho.
Devo me conformar. Nós seres humanos somos imperfeitos e todos temos nossas mazelas. Deus abençoe a minha avó, ao pai daquele prefeito, a ele próprio e a todos nós.

domingo, 21 de setembro de 2014

Mané Carrinho



Morava em Barra Velha, Santa Catarina, nas décadas de 1940, 1950, um senhor muito querido por todos,  bom papo, divertido, principalmente por contar histórias saídas de sua imaginação fértil, sem nenhum compromisso com a verdade. Seu nome, Manuel de Moura, mas todos o conheciam por Mané Carrinho. Logo que chegava a qualquer ambiente, imediatamente era rodeado pelos amigos ávidos por ouvir a sua última história.
Vivia sempre alegre, sorridente embora a vida não lhe sorrisse com fartura de bens materiais. O pouco que possuía era-lhe suficiente para viver feliz e fazer feliz, com suas histórias, quem o conhecia. Morava numa vila de pescadores entre o mar e a lagoa, logo depois do areão que foi destruído para que ali construíssem um Iate Clube. Sacrilégio!
Todo final de tarde, ele e toda a comunidade masculina local reunia-se na garapeira, de propriedade do Sr Ormélio Gonçalves, para atualizar os assuntos de política e outros. Ali se resolviam todos os problemas da cidade, estado, ou nação. Ali também se passava em revista a vida dos moradores do local. Ninguém escapava. Os clubes de futebol tinham ali os seus times festejados ou execrados, reforços contratados, técnicos demitidos, ou admitidos.  O tenente Rodrigues, delegado de polícia da época no local, batizou, muito apropriadamente, a garapeira do seu Ormélio de Café Veneno.
Essa garapeira ficava situada na beira da lagoa, bem na sua extremidade, sendo que os fundos tinham as estacas de sustentação já submersas. A população de siris e caranguejos naquele local era grande, atraídos pelos dejetos da cana que eram ali lançados. Provavelmente todos gordinhos e diabéticos. Mas a parada dos veranistas e também a nossa, os nativos, nesse local depois do banho de mar era obrigatória. O caldo de cana delicioso, às vezes com limão, dependendo da vontade do consumidor, impedia que se passasse por ali sem provar, pelo menos um copo. Essa é uma lembrança boa.
E seguia o Mané Carrinho a contar casos e arrancar risadas dos presentes todo final de tarde. Eu não me fazia presente nessas ocasiões, mas ouvia alguém contar as histórias no dia seguinte. A presença de mulheres, muito menos de menininhas era totalmente proibida naquele horário no Café Veneno, ou seja, na garapeira.
E ele contou que um dia, chegou a casa, ao anoitecer, com muita vontade de ouvir boa música. Pegou na estante um disco em 78 rotações do seu ídolo, Orlando Silva, e colocou-o na vitrola. Esperou alguns segundos que o concerto começasse. Só então lembrou que naquela comunidade não havia energia elétrica ainda. Ficou muito revoltado, jogou o disco pela janela e foi dormir lamentando por não ter podido ouvir seu ídolo.
Mas a história não termina aí. Estava o Mané Carrinho dormindo tranquilamente quando, alta madrugada, veio a surpresa. Orlando Silva cantava a plenos pulmões lá fora. O som vinha dos lados da laranjeira.  E não era sonho, não. Levantou-se de um salto e foi verificar o que estava ocorrendo. Contou ele que o disco, ao ser jogado por ele pela janela, foi parar nos galhos de uma laranjeira do seu quintal. Veio a brisa do mar e fez com que o mesmo girasse. Encostado em um espinho da árvore começou a tocar com um som da mais alta qualidade para deleite do Mané.
Esse foi um causo contado pelo folclórico Mané Carrinho. Não é de se admirar que todos gostassem tanto de ficar em sua companhia ouvindo suas histórias. A estante, o disco, a vitrola, são frutos da sua imaginação imensamente alegre e feliz. 
Pretendo contar ainda outras histórias desse homem tão querido na comunidade e valorizar um tempo em que, embora sem recursos, vivia-se feliz, alegre e contente por lá. 
Importante registrar esses fatos que compõem a história de um lugar e de um povo. Tenho muito amor e carinho por meu torrão natal. Orgulho-me de ter nascido nesse pedacinho de Brasil, Barra Velha.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Pequeno grande universo





Era da vontade de minha mãe que minha irmã e eu brincássemos com meu irmão um pouco mais velho do que nós. Éramos bem pequenos e dormíamos no mesmo quarto, os três. Tínhamos um gatinho malhado de branco e preto, cujo nome já me foge à memória, que sempre estava conosco e era muito amado. Nossa mãe só não permitia que ele dormisse no quarto, preocupada com a bronquite dos filhinhos, minha e do meu irmão. O que fazíamos então para ter a companhia de nosso bichinho de tanta estimação, nem que fosse apenas por algumas horas? Ao acordar de manhã bem cedinho, com todo cuidado para não fazer barulho, amarrávamos nossas calças de pijamas pelas pernas e colocávamos aquela tereza para fora da janela. O gatinho, esperto, não esperava que o convidássemos. Agarrava-se na corda improvisada e o içávamos para dentro, onde ficava conosco, bem quentinho, até a hora de levantarmos. Imagino que nossa mãe fazia vistas grossas para essa manobra radical que, para nós, era pura adrenalina.
Tenho lembranças de que ela comprava carrinhos, os nossos “autinhos” para brincarmos brincadeiras de menino com nosso irmão. E lá íamos os três para debaixo da casa, a fim de traçar o nosso sistema viário, ao custo de muitas e doloridas cabeçadas nas vigas do assoalho. As ruazinhas traçadas na areia ligavam o nosso restrito mundo conhecido, o nosso universo. Começava em Itajaí, passava por Barra Velha, daí para Joinville, onde moravam alguns parentes e acabava em São Paulo, terra dos parentes da nossa mãe. Salientando que sabíamos da existência de Itajaí porque havia uma linha diária de ônibus que passava de Itajaí para Joinville pela manhã e retornava no final da tarde e passava em frente a nossa casa. A garagem de todos os “autinhos” era embaixo das nossas camas. Tínhamos tanto carros de passeio, como também caminhonetes e caminhões. Na época da Páscoa estes amanheciam lotados de ovinhos de chocolate. Esse coelhinho!... cada vez mais me convenço de que tivemos um anjo que nos acompanhava em todos os momentos e sabia de todos os nossos movimentos. Mãezinha... quanta saudade... com ela aprendi tanto, inclusive e principalmente a fazer “limonada” com os “limões! Que a vida nos dá. E nisso ela era especialista.
Quando foram a São Paulo, minha irmã Ira, meu irmão Marinho e minha mãe (eu fiquei) para que meu irmão fizesse uma cirurgia, trouxeram de presente para ele uma bicicleta infantil vermelha, linda e atraente. O problema é que nós duas não podíamos nem pensar em chegar perto dela. A bicicleta da Tute, nossa irmã mais velha, era totalmente proibitiva para nós. O que fazer? Aprender a andar de bicicleta às escondidas, enquanto ela estivesse no trabalho. Sem outra alternativa, foi o que fizemos. Numa dessas andanças furtivas, íamos, a Ira e eu, uma em cada pedal, ruazinha a fora. Sobe, desce, sobe, desce... até que, ao virar uma curva para o lado onde eu estava, o tombo inevitável aconteceu. Lá fui eu parar dentro daquele valo, felizmente sem água, a bicicleta por cima de mim e a Ira por cima da bicicleta. Ai que dor! Chegando a casa, nem pude me queixar para não denunciar o delito do empréstimo compulsório daquela bicicleta horrível! Passado o susto e as dores, daí a alguns dias já estávamos nos divertindo com ela novamente.  Isso quando não almoçávamos bem rápido e, enquanto meu irmão terminava seu almoço com calma, rapidamente nós duas nos apossávamos da bicicletinha vermelha, tão gostosa de andar e nos divertíamos nem que fosse por pouquíssimos minutos.
Não posso deixar de agradecer a meus pais que sempre se preocuparam com nossa cultura, mesmo naquele lugar delicioso, mas tão sem recursos. Meu pai, toda vez que voltava da cidade trazia livros e revistas para nós. Assinava Nosso Amiguinho, Diversões Escolares e também trazia uma fartura de revistas para entretenimento de todos.
Hoje meu olhar alcança longe, os muitos livros que li deram-me a dimensão do mundo, no entanto percebo que não preciso muito mais do que aquele pequeno grande universo que desenhávamos embaixo da casa.