Abre-se mais um cantinho da memória... (parte III)
A janela continua aberta. Aproveito, então, para continuar a
narrativa antes que ela resolva se fechar e as memórias se escondam
irremediavelmente em um cantinho onde eu não possa encontrá-las mais.
Estava comentando sobre o quintal da minha casa. Aquele que
se assemelhava a um parque de diversões, embora em meu tempo de criança, nem sonhava
com o que seria um. Mais tarde, já éramos grandinhas, aparecia por lá um parque
que ficava instalado em um terreno de propriedade da família, bem ao lado da
nossa casa e, por isso, ganhávamos um ingresso livre e permanente. Podíamos
usufruir dos brinquedos ilimitadamente, sem custo. As Maninhas, Marilda e
Marília, a Polaca, Rosali Ravache, minha inseparável irmã Graça e eu não
saíamos dali. Nossas aventuras no Chapéu Mexicano são inesquecíveis. Eu sentia
que tocava o céu!
Retomando as brincadeiras da infância... não tínhamos
bicicleta assim, física, mas nossa imaginação inventiva usava a criatividade e
dávamos nosso jeito. Bastava tirar dois sarrafos da cerca e sentar no vão
deixado por eles. Um dos sarrafos era colocado no vão seguinte. Era o guidão. O
outro era colocado na travessa inferior da cerca. Era o pedal. Fazíamos altos
pedais, embora faltasse total conforto no selim. Nunca esquecendo de recolocar
os sarrafos no lugar depois dos “passeios”. Sobre aventuras de bicicleta, tem
aquela em que a Graça e eu pegamos a bicicleta da nossa irmã mais velha
enquanto ela estava no trabalho e fomos passear. Mas a tal bicicleta era muito
grande para andarmos sozinhas, então resolvemos ir cada uma em um pedal. Fomos
pela ruazinha, depois nomeada de Rua Rio de Janeiro. Ela subia e eu descia... e
vice-versa. Muito gostoso. Até a primeira curva. Ao virarmos a esquina,
tombamos dentro de uma vala que dava vazão às águas pluviais que, felizmente,
estava seca. Eu caí no fundo da vala, a bicicleta por cima de mim e a Graça por
cima da bicicleta. Uma tragédia! Nem podíamos nos queixar de dor. Colocamos a
bicicleta no lugar direitinho e ... silêncio!
Nossa casa era fixada em cima de pilares de tijolos na parte
leste para ficar nivelada. Ficava ali embaixo da casa um espaço que
utilizávamos para brincar de carrinho. Meu irmão Mário, a Graça e eu tínhamos
nossos “autinhos” e ali construíamos nossa cidade. Com pistas de rolamento e
tudo o mais que nosso limitado conhecimento imaginava que uma cidade pudesse
ter, quer dizer, quase nada. Passávamos tardes memoráveis nessa atividade. O único
e grande problema eram as cabeçadas nos caibros enormes que sustentavam a casa.
À noite, com alguns galos em nossas cabeças, colocávamos os veículos todos na
garagem, que ficava embaixo da cama de cada um. Na época de Páscoa, as
carrocerias dos caminhõezinhos amanheciam carregadas de ovinhos de chocolate.
Minha mãe era pura doçura e carinho conosco.
Em minha infância, tinha sempre ao alcance da mão uma
variedade de frutas retiradas diretamente do pé. Dentro do galinheiro, havia
uma goiabeira pequena que dava deliciosas goiabas brancas, doces como mel.
Atrás da garagem era um limoeiro cujos frutos bem alaranjados, rendiam
saborosas limonadas. Mas nada se compara ao pé de cereja que, somente há muito
pouco tempo vim a saber que não era uma cerejeira e sim um pé de jamelão. Oh...
que dó se saber enganada. Coisas da simplicidade. De qualquer forma essa, para
nós, cerejeira ficava bem rente à nossa cerca, mas para o lado do vizinho, o
senhor Arnoldo Luz. Esses frutos, seja lá o que fossem, amadureciam bem no
final do verão, já início de outono e eram nossa sobremesa. Depois do almoço,
nós três crianças subíamos na árvore e nos deliciávamos com aquele saboroso
fruto de cor vermelha bem escura, quase preta. E comíamos tanto até ficar sem
ar, “embaçados”, como intitulávamos aquele sintoma. Às vezes, acontecia o
imprevisto de sermos flagrados pela sogra do vizinho. A descida da árvore era
relâmpago. Deslizávamos pelos galhos que pendiam em nosso terreno e, sem
demora, estávamos na segurança de nossa propriedade. Houve um contratempo em
certa ocasião em que o Marinho caiu de mau jeito do galho da árvore e desmaiou.
Ai que susto! Qual não foi nosso alívio ao vê-lo levantar-se quase em seguida.
Estava recuperado. Ufa!
Meu irmão recebia os amigos em casa e, então, o quintal
virava uma verdadeira oficina de brinquedos. Eram pandorgas, bodoques,
campeonato de peca, arco de arame impulsionado por outro arame reto com gancho,
catapoca e uma variedade de brinquedos fabricados de acordo com a época.
Brincadeiras sazonais. Quando jovens,
todos os amigos da cidade saíam para estudar em colégio interno. Nas férias,
todos nos reuníamos na minha casa para jogar pingue pongue, ou tênis de mesa,
como queiram. E a saudade aperta e desaperta dentro do peito. Nós meninas
também tínhamos brincadeiras sazonais. Havia o tempo de brincar de bonecas, em
outros tempos brincávamos de casinha e de cozinhada. Quando a cozinhada era na
casa das Maninhas, até a mãe dela almoçava com a gente. Algumas iguarias feitas
nessas ocasiões eu nunca mais saboreei, mas lembro serem deliciosas. Por vezes,
nossa atividade era o teatro. Verdadeiras superproduções! Outra brincadeira que
não me esqueço era a de socar baga. Quando as sementes do sombreiro secavam, ao
socar e abrir a casca, dela se retirava uma amêndoa de inigualável sabor. Tinha
uma época certa do ano para se fazer isso. Pular corda, amarelinha e cinco
Marias. Para esta última brincadeira, confeccionávamos saquinhos, um mais lindo
do que o outro e os enchíamos de areia. Matéria prima farta na praia. Havia também
as brincadeiras no mar e na lagoa. Ah... essas merecerão um texto só para elas.
Para encerrar essa narrativa de nosso precioso quintal, devo
mencionar que o gramado que ficava à leste da casa, nos tempos de nossa
juventude, servia de palco para, nas madrugadas de verão, os garotos fazerem
serenatas, cantando e tocando canções românticas e muito ié ié ié. Traziam um aparato
com violões, chocalhos, marimba e outros instrumentos. Um verdadeiro concerto!
Lembro de meus pais saírem do quarto deles com os pescoços doloridos por
ficarem com a cabeça levantada do travesseiro na tentativa de não perder um só
acorde da linda cantoria. Mais saudade!...
Interrompo novamente este relato das minhas memórias da
infância privilegiada que tive, porque o texto atingiu um tamanho razoável. Pretendo
retomá-lo em outro momento para, então, entrar em casa. As lembranças de minha
casa são igualmente gostosas de lembrar e sei que o meu leitor irá gostar
também de ler. Repito, então.
Continua...
Delícia ler essas lembranças.
ResponderExcluirCreia. Também é delicioso escrever. Fuga da realidade.
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