sábado, 17 de abril de 2021

 

Abre-se mais um cantinho da memória... (parte III)

 

A janela continua aberta. Aproveito, então, para continuar a narrativa antes que ela resolva se fechar e as memórias se escondam irremediavelmente em um cantinho onde eu não possa encontrá-las mais.

Estava comentando sobre o quintal da minha casa. Aquele que se assemelhava a um parque de diversões, embora em meu tempo de criança, nem sonhava com o que seria um. Mais tarde, já éramos grandinhas, aparecia por lá um parque que ficava instalado em um terreno de propriedade da família, bem ao lado da nossa casa e, por isso, ganhávamos um ingresso livre e permanente. Podíamos usufruir dos brinquedos ilimitadamente, sem custo. As Maninhas, Marilda e Marília, a Polaca, Rosali Ravache, minha inseparável irmã Graça e eu não saíamos dali. Nossas aventuras no Chapéu Mexicano são inesquecíveis. Eu sentia que tocava o céu!

Retomando as brincadeiras da infância... não tínhamos bicicleta assim, física, mas nossa imaginação inventiva usava a criatividade e dávamos nosso jeito. Bastava tirar dois sarrafos da cerca e sentar no vão deixado por eles. Um dos sarrafos era colocado no vão seguinte. Era o guidão. O outro era colocado na travessa inferior da cerca. Era o pedal. Fazíamos altos pedais, embora faltasse total conforto no selim. Nunca esquecendo de recolocar os sarrafos no lugar depois dos “passeios”. Sobre aventuras de bicicleta, tem aquela em que a Graça e eu pegamos a bicicleta da nossa irmã mais velha enquanto ela estava no trabalho e fomos passear. Mas a tal bicicleta era muito grande para andarmos sozinhas, então resolvemos ir cada uma em um pedal. Fomos pela ruazinha, depois nomeada de Rua Rio de Janeiro. Ela subia e eu descia... e vice-versa. Muito gostoso. Até a primeira curva. Ao virarmos a esquina, tombamos dentro de uma vala que dava vazão às águas pluviais que, felizmente, estava seca. Eu caí no fundo da vala, a bicicleta por cima de mim e a Graça por cima da bicicleta. Uma tragédia! Nem podíamos nos queixar de dor. Colocamos a bicicleta no lugar direitinho e ... silêncio!

Nossa casa era fixada em cima de pilares de tijolos na parte leste para ficar nivelada. Ficava ali embaixo da casa um espaço que utilizávamos para brincar de carrinho. Meu irmão Mário, a Graça e eu tínhamos nossos “autinhos” e ali construíamos nossa cidade. Com pistas de rolamento e tudo o mais que nosso limitado conhecimento imaginava que uma cidade pudesse ter, quer dizer, quase nada. Passávamos tardes memoráveis nessa atividade. O único e grande problema eram as cabeçadas nos caibros enormes que sustentavam a casa. À noite, com alguns galos em nossas cabeças, colocávamos os veículos todos na garagem, que ficava embaixo da cama de cada um. Na época de Páscoa, as carrocerias dos caminhõezinhos amanheciam carregadas de ovinhos de chocolate. Minha mãe era pura doçura e carinho conosco.

Em minha infância, tinha sempre ao alcance da mão uma variedade de frutas retiradas diretamente do pé. Dentro do galinheiro, havia uma goiabeira pequena que dava deliciosas goiabas brancas, doces como mel. Atrás da garagem era um limoeiro cujos frutos bem alaranjados, rendiam saborosas limonadas. Mas nada se compara ao pé de cereja que, somente há muito pouco tempo vim a saber que não era uma cerejeira e sim um pé de jamelão. Oh... que dó se saber enganada. Coisas da simplicidade. De qualquer forma essa, para nós, cerejeira ficava bem rente à nossa cerca, mas para o lado do vizinho, o senhor Arnoldo Luz. Esses frutos, seja lá o que fossem, amadureciam bem no final do verão, já início de outono e eram nossa sobremesa. Depois do almoço, nós três crianças subíamos na árvore e nos deliciávamos com aquele saboroso fruto de cor vermelha bem escura, quase preta. E comíamos tanto até ficar sem ar, “embaçados”, como intitulávamos aquele sintoma. Às vezes, acontecia o imprevisto de sermos flagrados pela sogra do vizinho. A descida da árvore era relâmpago. Deslizávamos pelos galhos que pendiam em nosso terreno e, sem demora, estávamos na segurança de nossa propriedade. Houve um contratempo em certa ocasião em que o Marinho caiu de mau jeito do galho da árvore e desmaiou. Ai que susto! Qual não foi nosso alívio ao vê-lo levantar-se quase em seguida. Estava recuperado. Ufa!  

Meu irmão recebia os amigos em casa e, então, o quintal virava uma verdadeira oficina de brinquedos. Eram pandorgas, bodoques, campeonato de peca, arco de arame impulsionado por outro arame reto com gancho, catapoca e uma variedade de brinquedos fabricados de acordo com a época. Brincadeiras sazonais.  Quando jovens, todos os amigos da cidade saíam para estudar em colégio interno. Nas férias, todos nos reuníamos na minha casa para jogar pingue pongue, ou tênis de mesa, como queiram. E a saudade aperta e desaperta dentro do peito. Nós meninas também tínhamos brincadeiras sazonais. Havia o tempo de brincar de bonecas, em outros tempos brincávamos de casinha e de cozinhada. Quando a cozinhada era na casa das Maninhas, até a mãe dela almoçava com a gente. Algumas iguarias feitas nessas ocasiões eu nunca mais saboreei, mas lembro serem deliciosas. Por vezes, nossa atividade era o teatro. Verdadeiras superproduções! Outra brincadeira que não me esqueço era a de socar baga. Quando as sementes do sombreiro secavam, ao socar e abrir a casca, dela se retirava uma amêndoa de inigualável sabor. Tinha uma época certa do ano para se fazer isso. Pular corda, amarelinha e cinco Marias. Para esta última brincadeira, confeccionávamos saquinhos, um mais lindo do que o outro e os enchíamos de areia. Matéria prima farta na praia. Havia também as brincadeiras no mar e na lagoa. Ah... essas merecerão um texto só para elas.

Para encerrar essa narrativa de nosso precioso quintal, devo mencionar que o gramado que ficava à leste da casa, nos tempos de nossa juventude, servia de palco para, nas madrugadas de verão, os garotos fazerem serenatas, cantando e tocando canções românticas e muito ié ié ié. Traziam um aparato com violões, chocalhos, marimba e outros instrumentos. Um verdadeiro concerto! Lembro de meus pais saírem do quarto deles com os pescoços doloridos por ficarem com a cabeça levantada do travesseiro na tentativa de não perder um só acorde da linda cantoria. Mais saudade!...

Interrompo novamente este relato das minhas memórias da infância privilegiada que tive, porque o texto atingiu um tamanho razoável. Pretendo retomá-lo em outro momento para, então, entrar em casa. As lembranças de minha casa são igualmente gostosas de lembrar e sei que o meu leitor irá gostar também de ler. Repito, então.

Continua...

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