sábado, 16 de novembro de 2013

O lendário Mané Carrinho




Havia uma barbearia em Barra Velha, na esquina das ruas Ernesto Krause e Santa Catarina, cujo dono, um senhor de Curitiba, baixa estatura, cabelos brancos, bigodinho preto que atendia seus fregueses até o final da tarde, depois se dirigia ao bar do Horacinho, localizado onde atualmente está o Edifício Lagoa.
O bar marcava pela simplicidade. Mesinhas de madeira, cadeiras de palha, a areia da praia servindo de piso para o estabelecimento. Nesse tempo a praia se estendia até ali. O senhor barbeiro gostava de frequentar o bar especialmente para ouvir histórias de pescadores que por ali se reuniam nesse horário, entre eles o Mané Carrinho, que não frustrava seus ouvintes. Caprichou e mandou essa:
Inverno rigoroso, uma “lestada” de uns quinze dias impossibilitava qualquer atividade no mar, pois os parcos recursos da época não permitiam tal aventura. Restava-lhe apenas esperar a calmaria. Espiava diariamente, o Mané, por uma frestinha da janela e nada. O vento não aliviava. Sobreviviam alimentando-se de peixe “escalado”, aberto pelas costas, salgado e pendurado em cima do fogão de lenha para secar, armazenado justamente para essas ocasiões.  A “brisa” persistia e o peixinho estocado ia se acabando até que ficaram sem ter o que comer.  Foi até a lagoa para ver se pescava algo e não demorou muito para encontrar quatro enormes unhas de velha, um crustáceo de concha estreita e longilínea, que mede uns oito centímetros, mas as encontradas por Mané na ocasião, mediam uns vinte centímetros cada uma.
O senhor barbeiro, espantado, apoiava-se no encosto da cadeira, cujos pés traseiros iam se enterrando na areia do piso. Os olhos da criançada, cada vez mais arregalados. A narrativa continuava.
Trouxe para casa aquele achado providencial e entregou-o à esposa para que as temperasse e fritasse, enquanto ele se limpava da lama da lagoa. Foi quando ouviu um grande estrondo. Correu até a cozinha, procura daqui e dali a origem do barulho e constataram de diferente apenas que havia somente duas unhas de velha na frigideira. Não deram muita importância ao acontecido. Preparavam-se para comer quando outro estrondo se ouviu. Destampando a frigideira, viram que somente um crustáceo sobrava ali. Dividiram entre si, jantaram e foram dormir.
No dia seguinte, foi ele espiar novamente pela janela para sondar o tempo e vislumbrou, vindo pelo “combro” da praia, seu filho mais velho, o “Calo” (Carlos). Vinha agradecer ao pai o jantar da noite anterior, dizendo que, não fosse pelas três unhas de velha que ele havia mandado na noite anterior, não teriam o que comer. Nesse momento o Mané Carrinho encerra sua história, explicando: aqueles estrondos eram as unhas de velha saindo como um foguete pela janela e indo parar justamente na mesa de jantar do filho.
O senhor barbeiro não aguentou e caiu para trás com cadeira e tudo. 
As crianças caíram na gargalhada.


sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Cantos da memória




Este blog existe para registrar as histórias armazenadas na minha memória, antes que elas se escondam em algum canto onde eu não possa mais encontrá-las.


Os fatos narrados aqui não obedecerão uma cronologia conforme eles aconteceram. Será como se tivessem vida própria. As historinhas, elas mesmas, se apresentarão para serem narradas.


Tampouco terão compromisso sério com a realidade. Todo bom contador de histórias sabe que, às vezes, é preciso emendar o assunto até que a história fique boa. Essas "emendas", no entanto, terão apenas contornos de cenário, não comprometendo a veracidade do fato narrado.

domingo, 3 de novembro de 2013

Simples assim

"A felicidade não é deste mundo."
Sendo este planeta um mundo de provas e expiações, até que faz sentido. Todos estamos aqui para reparar as falhas cometidas em outros tempos. Somos, hoje, melhores do que fomos antes, essa é uma certeza incontestável. Por aqui passamos e vivemos com a finalidade de, a cada dia, evoluir no "ser". Tendo por meta essa evolução, a felicidade, ou o bem estar, passa a ser consequência inevitável na caminhada.
Sou irremediavelmente otimista e bem humorada, o que facilita em muito o progresso como pessoa, mas não deixo de lado a consciência de que há um longo caminho a percorrer ainda.
Para continuar seguindo, uma preciosa aliada é a simplicidade. Paremos para fazer uma rápida análise sobre alguns dos grandes líderes pacifistas que por aqui passaram: Jesus, Francisco de Assis, Gandhi, Chico Xavier, Teresa de Calcutá, Irmã Dulce, entre outros tantos, foram pessoas simples, em nenhum momento ostentaram riquezas, ou bens materiais. Preocuparam-se apenas em pregar a PAZ e o AMOR, com total desprendimento. Modelos a serem seguidos.
Há pouco tempo, li um livro sobre a vida de Paulo de Tarso. Quanto ensinamento! De importante cidadão judeu, um rabino, vindo de influente família, passou a um ser errante, simples, abdicando da fama e da fortuna para se dedicar a transformar a vida de tantos povos sobre os ensinamentos cristãos.
Um bom começo, com tantos exemplos a seguir, é descartar a vaidade. Sem ela, conseguimos nos livrar do orgulho, da ambição desmedida e passamos a ter um novo olhar para o mundo.
Na sequência, uma boa análise da nossa conduta trará à tona muitos defeitos e vícios dos quais devemos nos livrar. Eu mesma, consciente do meu temperamento explosivo, que tanta mágoa causou a tantas pessoas e a mim mesma, tratei logo de começar por aí a minha faxina interior. Posso dizer que, pelo menos nos últimos três ou quatro anos, com muito controle interno, tenho conseguido evitar os indesejáveis descontroles emocionais. Não faltaram motivos para eles acontecerem, creiam.
Contornada (com muita vigília) essa etapa, passei a me dedicar ao feio vício de fazer críticas a quem, ou ao quê quer que seja. Ainda tenho umas recaídas, mas estou em luta constante.
Decidida a levar adiante a minha reforma íntima, passei a enfrentar o que tenho considerado a maior batalha até agora: o murmúrio. Essa mania de reclamar faz com que eu dê dois passos para a frente e um para trás na caminhada.
Sigo tentando, vigiando, com a certeza de que a lista de vícios e defeitos para corrigir é longa, que caminhar é preciso, mas um dia, quem sabe daqui a mil anos, eu chego lá.
O mais importante: a simplicidade, o desapego e o firme propósito de ser melhor a cada dia têm me proporcionado cada vez mais momentos de puro bem estar. Acho que isso é felicidade, não?

sábado, 2 de novembro de 2013

Sou filha de Lourdes


Nasci de uma fada. Dessas que vivem seu conto e recusam qualquer contato com a realidade. O mundo lhes é cor-de-rosa. Sensíveis, machucam-se a cada entrevero, ou alteração de voz. Coisas de fada...
Suas mãos, mesmo sem varinha de condão, tinham magia. Perseguia a perfeição em tudo que fazia e os trabalhos resultavam magníficos, como se assim tivessem nascido. As roupas que confeccionava, os pratos que preparava, os bordados, trabalhos em tricô, crochê, flores em papel ou tecido entre tantas outras coisas. Uma virtuose.
As pessoas que partilharam de nossa mesa, certamente hão de se lembrar de seus quitutes, as sobremesas deliciosas que preparava. Nenhum prato era servido sem decoração. Um raminho de salsa, uma flor de tomate, peixes com escamas desenhado no purê de batatas, sem falar no chico balanceado, bananas fritas com creme cobertas com claras em neve gratinadas, ovos nevados, ou espuma de sapo, como costumávamos denominar aquela delícia feita de creme com gemas batidas e grandes flocos de claras em neve cozidas nesse creme fervente. O Manjar mármore misturava as cores do chocolate com o branco do creme de coco, decorado com ameixas em calda. E os bolos!... Impressionou-me seu talento artístico e criativo, quando fez um bolo de casamento, encomenda da noiva. Tinha três andares, sendo que a última parte ficava suspensa por palitos de espetinho cuidadosamente recobertos com algum material prateado. No meio dos palitos voejava um cupido também prateado. Aí é que vem sua criatividade. Barra Velha desse tempo não contava com panificadora, ou qualquer outro estabelecimento comercial onde se pudesse encontrar material para confeitaria. O que fazer? Comprou um bonequinho de plástico de uns seis a oito centímetros, desses peladinhos, cobriu-lhe as mãos, pés e rosto com esparadrapo e mergulhou-o na tinta prateada. Depois foi só esperar secar, tirar os esparadrapos, fazer o arco e a flecha com arame fino e pendurar, de uma forma que o fio não ficasse visível. Qualquer confeitaria de cidade grande não exibia um bolo tão bonito em sua vitrine.
Nossas roupas, costuradas em sua máquina caseira, mais de uma vez foram motivo para que alguma vizinha nos fizesse parar para apreciar a perfeição do corte e acabamento. Minha irmã mais velha desfilava modelos lindíssimos a cada festa ou baile, todos confeccionados por ela.
Como uma fada, vivia sempre a, pelo menos, dois palmos do chão. Não conseguiu se fazer entender muito bem enquanto esteve por aqui, mas o universo conspirou para que fosse assim, na maior parte de sua vida. Sentia-se infeliz e sofredora, mas viveu blindada das mazelas deste mundo. Como uma fada, todo e qualquer contato com a realidade mais cruel a machucava profundamente. Como uma fada, sua vida foi pautada no amor. Amou sempre, muito, tudo e todos.
O grande foco de seu amor foi seu companheiro amado, Sinval. Militar do Exército Brasileiro, foi reformado por grave problema de saúde, na época incurável. Orientado pelos médicos a procurar uma cidade de altitude ou o litoral para viver seus últimos dias, mudaram-se para Barra Velha. Essa sentença de morte não abalou o coração dedicado e amoroso de Lourdes. Nem farmácia havia lá. Ela deu um jeito de aprender a aplicar injeção, fez uma tabela com horários de remédios, entre comprimidos e injeções, alimentação controlada, vitaminas, banhos de sol e doses cavalares de amor e dedicação. Assim viu seu amado renascer para a vida. Será que sua varinha de condão atuou nessa empreitada? Várias décadas de felicidade viveram ainda, a despeito do diagnóstico do médico, tendo o amor como maior remédio.
Dona de uma linda voz, eu adorava ouvi-la cantar e ela cantava sempre, como uma fada...
Remexendo nos guardados, minha irmã e eu encontramos alguns manuscritos dela, coisas que rascunhava quando se sentia triste e só. Por eles percebe-se claramente a intensidade de seus sonhos. Era uma sonhadora, dessas que Drummond classifica como um caso de poesia. É uma autobiografia escrita em terceira pessoa. Fico comovida e vou às lágrimas lendo esses apontamentos.


"Ontem deste o primeiro grito para a alegria de todos os que te rodeavam.
Mais tarde, ao dizer a primeira palavra 'mamãe', que é a palavra mais doce, foi também uma grande alegria. Cresceste querida por todos, como um botão de rosa no meio de muitas flores multicores.
Tua adolescência, tua juventude, tua vida enfim, foram montanhosas.
No alto da montanha, muita alegria, sol, flores. Rosas com seus espinhos sorrindo para ti.
Logo mais abaixo da montanha, a escuridão, os espinhos crivando teu corpo e com eles a tristeza.
Hoje teus pensamentos se confundem com teus cabelos brancos, teu coração é de todos e se transforma numa pluma, mas quase ninguém te entende.
As feridas que os espinhos deixaram em teu corpo estão, aos poucos, cicatrizando.
Estás pisando no chão firme e cumpriste tua missão."


Esse é o registrodo manuscrito da minha fada. Penitencio-me por não estar na lista dos que a entendiam. Queria muito uma chance de poder reparar meus erros. Entristeço-me por somente agora ter os olhos abertos para o entendimento. Pedir perdão é pouco. Quero pousar a cabeça em seu colo e dizer: TE AMO MINHA FADA!
Pela minha fé, creio poder fazer isso um dia... se meu Bom Pai permitir, é claro!

Sobre o privilégio de ter um pai assim



Meu pai está entre as pessoas mais carinhosas que têm passado pela minha vida. Nada, nem ninguém poderia sequer pensar em atingir qualquer um dos seus, sem arrumar uma bela confusão. Isso não significa que fosse uma pessoa violenta, muito pelo contrário. Era um homem da paz e pela paz.
Antagonicamente, não era dado a gestos como abraços e beijos. Lembro-me de sua maior manifestação de contato físico com os filhos e netos que conheceu. Cheirava-nos o alto da cabeça e dizia: “Hummm, mo nego, que cheirinho de marcela!” Marcela, ou macela, é uma flor de aroma bem acentuado que se utilizava antigamente para encher travesseiros. Daí o perfume que sentia nos nossos “cocurutos”. 
Há, no entanto, uma exceção. Um único abraço, seguido de um beijo na testa, que recebi num momento marcante da minha vida, é o que vou relatar a seguir.
Estávamos no ano de 1974, em junho, e minha princesa número 1 ainda estava comigo. Meu pai, junto com sua amada Lourdes tinha decidido vir morar conosco, alegando a necessidade de auxiliar meu irmão na empresa dele, mas, na verdade, isso era pretexto para ficar comigo e garantir que nada faltasse a mim e a minha princesinha. Pura preocupação! Puro carinho!
Morávamos em uma ampla casa no bairro Boa Vista, em Joinville, bem próximo ao colégio onde eu trabalhava como professora. Nesse tempo, os cuidados com minha filhinha precisaram ser intensificados por conta de sua debilidade física cada vez maior. O médico que cuidava dela, um neurologista, provavelmente percebendo a proximidade do fim, aconselhou-nos, a mim e a meu marido, que “encomendássemos” outro bebê.
Assim aconteceu. Pouco tempo depois, eis que a Juliana já estava a caminho. E dá-lhe mimos e paparicos para a grávida mais recente! Meu pai fazia todas as minhas vontades. Vezes sem conta saia à noite, no inverno, em busca do desejado pinhão cozido, que trazia quentinho. Eu tinha até que tomar cuidado ao fazer qualquer comentário, pois ele não costumava deixar passar nada. Um anjo da guarda cinco estrelas!
Mas num dia, infelizmente aconteceu o que todos prevíamos e temíamos. O estado de saúde de minha filhinha piorou muito. Nesse momento eu estava ausente de casa, dando aula e, quando cheguei meu marido, 
junto com minha mãe e minha amada diretora que os levou no seu carro, já haviam-na levado para o hospital. Meu pai ficara me aguardando para irmos juntos para lá. Ao chegarmos, avisaram-nos que ela não resistira. Minha primeira reação foi ir até onde ela estava. Foi quando meu pai me abraçou, beijou-me a testa e disse:
“Fica aqui com o pai.”

Começo, ou recomeço

E recomeço...
e recomeço...
e recomeço o começo,
isso não cansa!
Eu sei
que em cada começo,
ou recomeço,
há uma ESPERANÇA!!