sábado, 2 de novembro de 2013

Sou filha de Lourdes


Nasci de uma fada. Dessas que vivem seu conto e recusam qualquer contato com a realidade. O mundo lhes é cor-de-rosa. Sensíveis, machucam-se a cada entrevero, ou alteração de voz. Coisas de fada...
Suas mãos, mesmo sem varinha de condão, tinham magia. Perseguia a perfeição em tudo que fazia e os trabalhos resultavam magníficos, como se assim tivessem nascido. As roupas que confeccionava, os pratos que preparava, os bordados, trabalhos em tricô, crochê, flores em papel ou tecido entre tantas outras coisas. Uma virtuose.
As pessoas que partilharam de nossa mesa, certamente hão de se lembrar de seus quitutes, as sobremesas deliciosas que preparava. Nenhum prato era servido sem decoração. Um raminho de salsa, uma flor de tomate, peixes com escamas desenhado no purê de batatas, sem falar no chico balanceado, bananas fritas com creme cobertas com claras em neve gratinadas, ovos nevados, ou espuma de sapo, como costumávamos denominar aquela delícia feita de creme com gemas batidas e grandes flocos de claras em neve cozidas nesse creme fervente. O Manjar mármore misturava as cores do chocolate com o branco do creme de coco, decorado com ameixas em calda. E os bolos!... Impressionou-me seu talento artístico e criativo, quando fez um bolo de casamento, encomenda da noiva. Tinha três andares, sendo que a última parte ficava suspensa por palitos de espetinho cuidadosamente recobertos com algum material prateado. No meio dos palitos voejava um cupido também prateado. Aí é que vem sua criatividade. Barra Velha desse tempo não contava com panificadora, ou qualquer outro estabelecimento comercial onde se pudesse encontrar material para confeitaria. O que fazer? Comprou um bonequinho de plástico de uns seis a oito centímetros, desses peladinhos, cobriu-lhe as mãos, pés e rosto com esparadrapo e mergulhou-o na tinta prateada. Depois foi só esperar secar, tirar os esparadrapos, fazer o arco e a flecha com arame fino e pendurar, de uma forma que o fio não ficasse visível. Qualquer confeitaria de cidade grande não exibia um bolo tão bonito em sua vitrine.
Nossas roupas, costuradas em sua máquina caseira, mais de uma vez foram motivo para que alguma vizinha nos fizesse parar para apreciar a perfeição do corte e acabamento. Minha irmã mais velha desfilava modelos lindíssimos a cada festa ou baile, todos confeccionados por ela.
Como uma fada, vivia sempre a, pelo menos, dois palmos do chão. Não conseguiu se fazer entender muito bem enquanto esteve por aqui, mas o universo conspirou para que fosse assim, na maior parte de sua vida. Sentia-se infeliz e sofredora, mas viveu blindada das mazelas deste mundo. Como uma fada, todo e qualquer contato com a realidade mais cruel a machucava profundamente. Como uma fada, sua vida foi pautada no amor. Amou sempre, muito, tudo e todos.
O grande foco de seu amor foi seu companheiro amado, Sinval. Militar do Exército Brasileiro, foi reformado por grave problema de saúde, na época incurável. Orientado pelos médicos a procurar uma cidade de altitude ou o litoral para viver seus últimos dias, mudaram-se para Barra Velha. Essa sentença de morte não abalou o coração dedicado e amoroso de Lourdes. Nem farmácia havia lá. Ela deu um jeito de aprender a aplicar injeção, fez uma tabela com horários de remédios, entre comprimidos e injeções, alimentação controlada, vitaminas, banhos de sol e doses cavalares de amor e dedicação. Assim viu seu amado renascer para a vida. Será que sua varinha de condão atuou nessa empreitada? Várias décadas de felicidade viveram ainda, a despeito do diagnóstico do médico, tendo o amor como maior remédio.
Dona de uma linda voz, eu adorava ouvi-la cantar e ela cantava sempre, como uma fada...
Remexendo nos guardados, minha irmã e eu encontramos alguns manuscritos dela, coisas que rascunhava quando se sentia triste e só. Por eles percebe-se claramente a intensidade de seus sonhos. Era uma sonhadora, dessas que Drummond classifica como um caso de poesia. É uma autobiografia escrita em terceira pessoa. Fico comovida e vou às lágrimas lendo esses apontamentos.


"Ontem deste o primeiro grito para a alegria de todos os que te rodeavam.
Mais tarde, ao dizer a primeira palavra 'mamãe', que é a palavra mais doce, foi também uma grande alegria. Cresceste querida por todos, como um botão de rosa no meio de muitas flores multicores.
Tua adolescência, tua juventude, tua vida enfim, foram montanhosas.
No alto da montanha, muita alegria, sol, flores. Rosas com seus espinhos sorrindo para ti.
Logo mais abaixo da montanha, a escuridão, os espinhos crivando teu corpo e com eles a tristeza.
Hoje teus pensamentos se confundem com teus cabelos brancos, teu coração é de todos e se transforma numa pluma, mas quase ninguém te entende.
As feridas que os espinhos deixaram em teu corpo estão, aos poucos, cicatrizando.
Estás pisando no chão firme e cumpriste tua missão."


Esse é o registrodo manuscrito da minha fada. Penitencio-me por não estar na lista dos que a entendiam. Queria muito uma chance de poder reparar meus erros. Entristeço-me por somente agora ter os olhos abertos para o entendimento. Pedir perdão é pouco. Quero pousar a cabeça em seu colo e dizer: TE AMO MINHA FADA!
Pela minha fé, creio poder fazer isso um dia... se meu Bom Pai permitir, é claro!

Um comentário:

  1. Confesso que me emocionou a história de sua fada!! Não falou dela pra mim, desse jeito!!

    ResponderExcluir