Ali na esquina da Rua Paraná e Av. Santa Catarina, em Barra
Velha, residia em antiga casa de alvenaria de pedras e forte argamassa, uma
senhora idosa e tronco de numerosa família, hoje espalhada por esses brasis.
As rugas marcavam sua face, batida pelo vento dos anos.
Viera para Barra Velha, moça ainda, em sua viagem de núpcias, com o marido
“seu” Lopes Moura, que a trouxera de São Francisco, pelo mar, em canoa grande,
desembarcando na praia, para nunca mais voltar à sua terra e na verdade, nunca
mais sair de sua nova morada.
Velhinha por todos respeitada e querida, carinhosamente
chamada de Vovó ou Sinhá. Sempre conquistando novas amizades e conservando as
que seu esposo deixara ao partir para o além, legando-lhe uma numerosa prole,
que muito amava.
Pouco a pouco os filhos foram casando, transferindo-se de lá
em busca de novas terras. Com Sinhá ficou Maria José (para nós, apenas Zeca), e
o neto Nino.
Contam-nos que há cincoenta anos, pouco menos, nossos pais
se hospedaram pela primeira de uma série de vezes, em casa de “seu” Lopes. É
que, em busca de saúde, sol e mar, fora-lhes recomendado passar algum tempo em
uma praia. Escolheram a São Pedro de Alcântara de Barra Velha que gozava de bom
nome e era cantada por suas virtudes, além de ter sido um porto embarcadouro de
mercadorias da costa, mas já a esse tempo em declínio, tinha renome como praia
piscosa e farta.
A viagem de um dia bem aproveitado, só podia ser feita em
carroça, mas todo sacrifício valia, pois, buscava-se a saúde.
O “coroa” aqui, ainda vagava no espaço, esperando a
oportunidade, que demoraria um pouco, de vir incorporar-se à família. Por isso,
não nos lembramos de nada...
A experiência foi tão boa que, a partir de então, Barra
Velha nunca mais ficou mais de uns poucos meses sem a visita de nossa clã, por
um dia, um mês, uma temporada e até, como agora acontece, para sempre lá estão
residindo os dois culpados de havermos nascido... É como diz meu filho, “uma
gamação até a medula”...
Em 1930 foi construída a casa de nossos pais. Anos mais
tarde, Nino e nós, virávamos Barra Velha pelo avesso...
Formávamos uma dupla de amigos constantes, para tudo,
inclusive, muita vez, suportando brigas “valorosas” em termos de: dois contra
o resto...
Por isso mesmo, Sinhá Antonica com paciência e carinho,
tratava as feridas e arranhões, lavando-os e pincelando iodo do bom... e quem
disse que se conseguia escapar. Pois sim! Após, dava-nos reprimendas homéricas
e prometia castigo ao Nino, o que equivalia a prometer a nós ambos. Valia a
intenção.
Pela manhã bem cedinho a gente saía de casa e ia ajudar a
Zeca a tirar o leite. Sempre sobrava uma caneca bem cheia, quentinho, ao
natural, que saboreávamos com prazer enorme. Hoje, não sei não...
Nos fundos da casa da Vovó Antonica, um pomar com laranjeiras,
tangerineiras, mamoeiros altíssimos, goiabeiras, um pé de araçá e outro de
grumixama. Uma delícia, com ou sem autorização de Sinhá...
Por ali, Nino e nós caçávamos rolinhas, sanhaçus e tiés, mas
estávamos proibidos de capturar e matar as “minhas” sabiás, como as chamava
Sinhá Antonica. Todavia, vez por outra uma descuidada sabiá ficava bem em
frente a uma rolinha e, sem querer, era abatida... essas coisas acontecem,
sabe!?
Muitas vezes Vovó Antonica esperava o instante certo e
quando tinha-se na mira do bodoque a sabiá, ela balançava sua comprida saia em
voleios que assustava a passarinhada, mas ninguém reclamava, não! Fugia-se!
Meia hora depois ela já havia esquecido.
Nós mesmos depenávamos as avezitas e a Zeca as limpava,
cortava e Vovó Antonica preparava aquela farofa mais gostosa do mundo,
adicionando quase sempre, um pedacinho de lingüiça e torresmo.
Até hoje sinto o gosto gostoso!
Nino, porém, adoeceu longamente e cedo demais foi para o
outro lado da vida. Zeca, sua mãe, o seguiu pouco tempo depois, o mesmo fazendo
Sinhá Antonica para ir reunir-se com aqueles entes queridos que em tão estreita
comunhão viveram.
Hoje, embora tudo seja diferente, quando por lá passo,
revivo cenas assim:
- Bênção Vovó Antonica!, e a ouço responder:
Deus T’abençoe, meu filho. Segurava-me a cabeça entre as
mãos, beijando-me a testa e completava:
Este ano não vai ter estrepolia, não! Vocês já tão ficando
grande. Amarro tu e o Nino num pé de laranjeira! Moleque safado! E tornava a
abraçar-me e beijar-me.
Tudo passou. Só restou a saudade. A boa saudade!
Até um dia, Vovó Antonica!
O Dr. Roberto Hélio
Ramos Alvim escreveu essa crônica sobre minha avó Antonica na década de 1970.
Na ocasião em que lhe fiz uma visita, já no século XXI, a ele e à sua amada Terezinha, com a
intenção de lhe pedir autorização para transcrever aqui o seu texto,
conversamos longamente. Ele naturalmente acedeu ao meu pedido e ficamos “trocando
figurinhas” por um bom tempo. Momentos preciosos foram aqueles.
Alguns anos depois de minha visita, ele partiu para o
outro lado da vida também. Chegou o dia
em que iria se reencontrar, lá em outras paragens, com minha avó e seu grande amigo Nino para matar
todas as saudades sentidas por aqui.
Fui tomada de grande
comoção ao reescrever sua crônica. Pessoas assim tão do bem não deveriam nos
deixar nunca. Minha fé me assegura nosso reencontro também.