domingo, 19 de setembro de 2021

Dona Mariquinha e a Lombriga


 

Eles ainda estavam por aqui, neste plano, quando tive a feliz ideia e o privilégio de fazer uma visita aos amigos, seu Servinato e dona Mariquinha. Ele, pescador.  Ela, dona de casa. Sobre ele tenho algumas histórias registradas envolvendo aventuras no mar.

Na ocasião da agradável visita, acontecida já há alguns anos, dona Mariquinha contou sua aventura. E não foi no mar. Seus pés estavam bem fincados no chão.

Antes quero mencionar detalhes que envolvem essa família e estão bem presentes em minha memória. Nossas famílias eram bem próximas. Meus pais batizaram uma das filhas do casal, se não me engano a Dulce Helena, portanto eram compadres. As filhas, Zeni e Zeli, especialmente, eram nossas amigas, tanto na escola, como nas brincadeiras diárias. A prole era bem grande. As citadas acima eram as mais velhas. Depois vieram muitos mais que eu não saberia enumerar. Quando fui visitá-los eles moravam com um dos filhos, o Silvio.

De vez em quando, à tarde, íamos à casa deles chamar as meninas para brincar. Era impossível não observar a limpeza do terreiro, era como chamavam o quintal da casa deles. Uma areia fina e branca, cuidadosamente rastelada para que ali não ficasse uma única folhinha. O rastelo deixava desenhos no chão. Era muito lindo. Nessas ocasiões, o pai dormia a fim de repor as energias para enfrentar o mar durante boa parte da noite seguinte, a mãe remendava as redes e tarrafas e as crianças arrumavam os anzóis com as linhas no espinhel. Somente depois dessa tarefa concluída é que as meninas podiam sair para brincar.

Tarefa cumprida, saíamos pelo mundo. Era nosso quintal. As brincadeiras sazonais variavam entre pular corda com o baraço da vegetação de restinga da praia, o que nos deixava com as palmas das mãos pretas e grudentas por causa da resina que a “corda” soltava. “Sal, pimenta, fogo” e já nos preparávamos para o tombo inevitável na areia.  Brincadeiras de bonecas, casinha, cozinhada, ainda lembro do sabor inigualável da comida de verdade feita nessas ocasiões, com destaque para cabeça de tainha no feijão, no final do outono, época em que se pescava tal peixe, uma iguaria que nunca mais experimentei. E tantas outras brincadeiras maravilhosas, tantas que merecerão um texto só para elas.

Voltemos para a história da dona Mariquinha. Ela me contou que houve um tempo, muito tempo aliás, em que ela começou a sentir fortes dores no baixo ventre. Os dias se passaram, ela tomou chá de ervas que lhe ensinaram e nada de passar a dor. Resolveu então procurar o único recurso de assistência médica que havia no lugar. Um posto de saúde que ficava sob a responsabilidade de dona Lily e dona Erna. Estas levavam muito a sério seu trabalho e recebiam com carinho e atenção todos que precisavam de cuidados médicos e de enfermagem. O posto de saúde era visitado mensalmente por um médico famoso de Curitiba, de quem vou omitir o nome. Li o nome dele entre os fundadores de importante hospital dessa cidade tempos atrás. Dona Mariquinha marcou uma consulta e foi pedir socorro ao profissional para se livrar de suas dores abdominais.

  Devido aos parcos recursos médicos e, principalmente, aos hábitos alimentares e de higiene inadequados, a população do lugar era, frequentemente, acometida de verminose. O doutor, após minucioso exame, não teve dificuldade em dar o diagnóstico e receitou seis “bagas dextamanho”, disse-me dona Mariquinha, apontando mais da metade do seu dedo mínimo. Uma dose generosa de vermífugo. Continuou o relato dizendo que foi para casa contente por visualizar a cura próxima. E, naquela noite, tomou os seis comprimidos de uma vez.

Qual não foi sua decepção ao sentir que as dores ficaram mais intensas. Muito mais!  E, naquela madrugada, a dor cessou somente quando ela pariu o Antônio, a lombriga que tanto lhe causava sofrimento. Um menino tão franzino e pequeno que todos duvidaram que sobreviveria. Minha mãe foi visitar a comadre. Minha irmã mais velha, que a acompanhou, relatou depois, que a criança tinha o tamanho de um garfo.

Contrariando a maioria dos que o viram recém-nascido, Antônio cresceu, casou-se e teve filhos. Até virou um grande contador de histórias.

A história é trágica, mas até dona Mariquinha deu boas risadas ao contá-la.

terça-feira, 15 de junho de 2021

O cunhado


 

Lembro aquela casa branca, um bangalô situado bem próximo à ponta da Lagoa, sempre de portas abertas para acolher quem chegava de viagem e aportava ali pertinho, recém-chegado de viagem e faminto. Esse local era uma espécie de aduana da qual Zé Lopinho fora designado fiscal pelas autoridades competentes em São Francisco do Sul. A casa era propriedade da família Moura. O casal, Sinhá Antonica, Antônia Higina da Graça Moura, e seu marido José Antônio Lopes de Moura, popularmente conhecido como Zé Lopinho, mais seus seis filhos. Na frente da casa havia uma calçada e alguns degraus. Ali vinham sentar, à noite, as esposas dos pescadores que traziam seus filhos para brincar e tomar um ar fresco nas noites quentes de verão. Essa casa também abrigou a sede da prefeitura, quando da primeira tentativa de emancipar o Distrito de Barra Velha, do município de Araquari.

De toda a família, conheci apenas minha avó, Sinhá Antonica, meu tio Odorico, o mais velho dos seis irmãos e meu pai, o mais novo da família. Quando minha avó partiu, em 1954, aos noventa e quatro anos, eu tinha apenas quatro. Lembro-me perfeitamente desse dia. Vi meu tio chorar sentado na nossa cozinha. Mas minha lembrança da amada avozinha é anterior a isso. Sempre recostada na cama a nos ensinar o ABC... Eu gostava de ficar com ela. Usava um lenço, de estampa miudinha em um fundo preto, na cabeça, amarrado embaixo do queixo. De vez em quando, levantava a lateral do lenço com uma das mãos e com a outra, arrumava o cabelo para que não parecesse espalhado. Eu gostava de vê-la fazer isso. Até a imitava. Ela morava conosco desde que ficou bem velhinha. Conseguia se deslocar pela casa e fazia as refeições conosco, à mesa. Até o dia em que desceu a escada da cozinha que dava acesso ao quintal para pitar seu inseparável cachimbo, caiu e quebrou o fêmur. Nunca mais saiu da cama. Não lembro de vê-la triste. Um belo exemplo de como enfrentar adversidades.

Mas hoje vou escrever sobre meu tio Odorico. Meu pai contava que o seu irmão tinha o cavalo mais bonito, o mais cobiçado, enfim, o melhor cavalo da região. Nesse tempo era o único meio de transporte. Como montaria ou puxando as carroças. Em um certo dia, ele montou, provavelmente escondido, o tão famoso cavalo do irmão e rumou para fora da propriedade. O bicho estranhou o cavaleiro, foi em direção à porteira fechada, deu uma freada brusca e saltou o obstáculo com o cavaleiro atônito em cima. Experiência tão inesquecível quanto surpreendente. Lembranças de uma juventude privilegiada.

Tio Odorico tornou-se um homem e foi para Joinville tentar a vida. Lá casou-se com minha tia Lídia com quem teve cinco filhos. O casal adotou mais um. Eu o vi por ocasião do falecimento de minha avó e depois não tenho lembrança de tê-lo visto em minha casa, o que começou a ocorrer quando eu já estava grandinha e ele bastante idoso. Aparecia de vez em quando e ia direto para o porto das canoas a fim de conversar com os pescadores. Entre uma conversa e outra, um gole da “branquinha “ e não via passar o tempo. Nós, em casa, costumávamos almoçar exatamente ao meio dia e titio chegava sempre depois das treze horas, já bem “alegre”, com uma porção de peixes, todos muito pequenos ainda necessitando limpar e fritar para o seu almoço. Minha mãe ficava um tanto irritada quando isso acontecia. Também, pudera! Via de regra, nós já estávamos terminando nossa refeição sem sequer imaginar que teríamos visita para almoçar. Um cunhado e tanto!

Certamente ficávamos todos sentados à mesa, em respeito à visita e por ser o irmão mais velho de nosso pai. Porém a conversa durante a refeição era um tanto ou quanto desagradável. Ele reservava-se o direito de dar palpite em nossas vidas. Tudo estava errado. Todos recebiam críticas, mas o foco principal era sempre o meu irmão Mário. Coitado! Sofria calado e também meu pai se mantinha em silêncio. Era o irmão mais velho, afinal. Ele não mudava o tema da conversa em todas as visitas. Meu irmão estava errado, tudo estava errado e queria a todo custo me levar com ele para Joinville. Eu ficava apavorada!

Fazia discurso, gesticulava, falava muito alto e o peixe frito teimava em sair da sua boca. Sempre em tom de crítica à educação que meus pais nos davam. Hoje até lembro com ternura o único tio paterno que conheci, mas na época era um pouco difícil entender aquilo que eu achava totalmente injusto. Com minha mãe, com meu irmão tão amado e com meu pai. Sem falar no pavor que me causava a ideia de morar com ele e sua família em Joinville. Chegar para almoçar sem avisar, com peixes para limpar e preparar fora de hora era, para mim, uma tremenda falta de consideração para falar o mínimo.

Passados tantos anos, consigo entender a lógica de tudo aquilo e até entender as ótimas intenções de meu tio Odorico. Vejo amor e uma preocupação paternal nas suas atitudes. Talvez os métodos, na época, me impactassem um pouco (ou muito rsrsrs). Também as circunstâncias não o favoreciam. Penso que a “branquinha” agia para desmoralizar seu discurso. Quem sabe sóbrio ele conseguisse se fazer entender melhor.   

    

 

 

  

 

sábado, 22 de maio de 2021

O Lobisomem

  

Em todos os lugares, sejam cidades grandes, cidades pequenas, vilas ou aldeias há sempre aquelas figuras folclóricas que se destacam por alguma característica exuberante. Conheço algumas de diversos lugares.

Em Joinville, há tempos, andava pela cidade, com a perna enrolada em faixas e ataduras, a simpática senhora que conversava com todos e a todos divertia, a Rosa do pé inchado. Era, por todos, assim conhecida.

Em Curitiba, há um homem de meia idade que se compraz em andar por toda a cidade, de bicicleta, usando uma sunga e o corpo coberto de óleo. Chamam-no Oil Man. Não tenho ideia do que o leva a agir assim. Todos o conhecem. Também em Curitiba, nas décadas de 1960 e 1970, vagava pelas ruas, na região da famosa Boca Maldita, a Gilda, um travesti alegre, estimado e respeitado por todos e era a diversão daqueles que por ali passavam.

Se formos pesquisar, encontraremos diversos desses personagens folclóricos em todos os lugares. Barra Velha não é diferente. Contarei aqui a história do senhor Antônio, um personagem da minha infância nessa localidade. Contava meu pai, que conviveu com ele na juventude de ambos, eram amigos até, que desde a juventude tinha uma personalidade, diríamos, rebelde. Tinha um espírito jocoso, dado a atitudes pouco convencionais. Serviu o exército no litoral de Santa Catarina, mas tornou-se um desertor por arriar a Bandeira do Brasil do mastro da unidade militar em que estava e, em seu lugar, hastear um saco de estopa. 

De outra feita, já morando em Barra Velha, quando trabalhava em uma padaria, tirou toda a roupa, passou uma substância oleosa por todo o corpo e, por cima passou cinza preta do forno da padaria. Assim caracterizado, todo pintado de preto e brilhante, foi até a casa da namorada, onde a família toda reunida na sala, rezava o terço com muita fé, em devoção à Maria de Nazaré. Qual não foi o assombro de todos os presentes quando irrompe pela janela aquela figura sinistra a pular por cima da mesa e por toda a casa. Imediatamente saiu pela porta do mesmo jeito que entrou. Aos pulos e berros. São essas algumas peripécias de seu Antônio na sua juventude.

O tempo passou e nosso personagem foi acometido de uma paralisia facial que o deixou com sequelas. A boca entortou e para tentar disfarçar o defeito deixou crescer a barba. Também passou a ter muita dificuldade de se fazer entender. Meu pai, que permaneceu um amigo fiel, o entendia e, sempre que precisava se comunicar com alguém, por algum motivo, vinha até minha casa para recorrer ao amigo. Nós, as crianças do lugar, tínhamos muito medo dele. Diziam que ele virava Lobisomem nas noites de lua cheia. E ele alimentava essa ideia para aterrorizar a criançada. Fico trêmula só de lembrar. Soube por uma vizinha dele que, depois do seu falecimento, foram encontrados livros de esoterismo e cultos nada recomendados para seres da luz, em sua casa. Também tomei conhecimento da existência de uma filha dele. Nunca soube que tivesse família.

Em uma tarde de julho, fria e chuvosa, dessas que formam um cenário perfeito para uma história de terror, eu estava sozinha na varanda, desalentada com a impossibilidade de fazer qualquer coisa, inclusive ir a algum lugar. Podia inclusive, dali, ouvir a fúria do mar com as ondas batendo com estrondo na areia, uma atrás da outra. A cada estrondo, tinha-se a impresso de que as ondas estavam mais perto. Afinal, uma tarde muito sinistra. Num certo momento, ouço um pocotó, pocotó, pocotó vindo da esquerda, descendo a colina onde ficava a pequena igreja, com portas abertas para o mar. Era uma rua estreita, de terra, muito úmida por conta do tempo chuvoso, e aquele cavalo vindo em direção a nossa casa. Tentem visualizar nas suas mentes o que vou lhes descrever neste momento. O cavaleiro. Tinha barba grisalha, a cabeça coberta por um chapéu de feltro enterrado na cabeça, um cordão que servia para fixá-lo lhe ia pendurado no peito. A copa do chapéu era alta e arredondada com abas um pouco mais largas do que o normal para um chapéu normal de um cavaleiro normal. Nunca o vi sem aquele chapéu. Nem sei se tinha cabelos. Trazia sobre si uma capa de lã rústica bem grossa de um cinza meio escuro. Era uma pelerine, pois não tinha mangas e era largo a ponto de cobrir cavalo e cavaleiro. Tinha apenas uma gola com três ou quatro botões na frente e uma abertura para passar as mãos. Era o seu Antônio!

Quando, naquele cenário de horror, visualizei aquela criatura bizarra, para dizer o mínimo, se aproximando, fiquei petrificada. Queria ter visto minha expressão facial de puro pavor naquele momento. Eu ali parada, sem conseguir me mover e o cavalo pocotó, pocotó na minha direção.

Ao passar pela frente da minha casa, seu Antônio puxou a rédea esquerda e o cavalo prontamente obedeceu parando com a cabeça por cima do portão, dentro do meu quintal. O cavaleiro apeou, veio até mim, com aquela capa batendo-lhe os pés. Pensei morrer. Ele me olhou fixo, provavelmente, no íntimo, a se divertir com meu escancarado pavor, e disse: grjljaolpwnh. Foi somente então que despertei do estado de pânico em que me encontrava e corri para dentro de casa, gritando:

Paaaaaiiii!

            

terça-feira, 11 de maio de 2021

A despedida da Lucinda

 

 

Eram três irmãs, Brandina, Francisca e Lucinda, a mais longeva. Havia também o Antônio Clemente, talvez o mais velho dos irmãos, a quem meu pai dava assistência nas horas de necessidade. Aliás, assistia aos quatro. Tinham traços típicos dos índios Guaranis. A cor da pele muito morena e os cabelos bem lisos. Não descarto a possibilidade de haver laços de parentesco com a família de meu pai. Muito me orgulho disso. Infelizmente não tínhamos muito contato, quase nenhum, por isso, praticamente nada sei sobre eles.

O Antônio Clemente foi autor de um gesto que ficará para sempre gravado em minha memória. Quando meu pai faleceu, o guardamento do corpo foi feito em casa, como era costume na época. Como era uma pessoa bem relacionada no lugar, a sala estava cheia de pessoas que vieram para dar seu último adeus a ele. De repente, irrompe na sala, visivelmente transtornado, o amigo Antônio. Chapéu desabado nas mãos, usava sua melhor roupa para se despedir de seu protetor. Dirigiu-se aos pés do caixão, ali se ajoelhou e, em copioso pranto pôs-se a fazer suas preces. Muita emoção causou esse seu gesto naquele momento. Muita emoção me causa registrar aqui, neste momento.

De tempos em tempos, sempre no momento em que estávamos à mesa almoçando, ouvíamos batidinhas muito suaves na porta lateral da cozinha. Quase em uníssono, dizíamos: “As meninas”, era como as chamávamos. Meu pai ia atender e, ao abrir a porta, lá estavam as três. Mãos entrelaçadas, esfregadas nervosamente umas nas outras, mostravam timidez e humildade extremas. Elas vinham, a pé, da Itajuba, um bairro não muito próximo, em casos de muita necessidade, em busca de alimento. Nem de longe lembravam aquelas pessoas que criam dependência e vivem da caridade de quem os possa ajudar. Ali em casa almoçavam e ao voltar para casa levavam as sacolas e os braços cheios de alimentos, que serviriam para alimentá-las por um bom tempo, levavam também algum dinheiro para gastos imprevistos. As três eram muito delicadas. Quase não se podia ouvir o que diziam. Muito doces.

Enfim, todos os irmãos partiram desta vida em circunstâncias, para mim desconhecidas, com exceção da Lucinda, que, sozinha, passou a morar com parentes próximos. Até o dia em que, decorrente de problemas naturais pela idade avançada, adoeceu e precisou ser hospitalizada. Morava em Barra Velha e foi internada em um hospital de Joinville. Por mais que esforços fossem envidados para que ela recuperasse a saúde, não resistiu e veio a falecer. O próprio hospital avisou a família e transportou o corpo para Barra Velha, deixando o caixão na casa dos parentes, com a recomendação expressa de que, em hipótese nenhuma, o caixão poderia ser aberto.

Os parentes, por sua vez, lutavam com dificuldades para sobreviver e, assustados, ficaram perdidos, sem saber o que fazer. Não tiveram dúvidas em recorrer à minha irmã Tute que sabiam morar ali perto. Assim fizeram. Esta também não reunia condições de sozinha tomar qualquer providência. Acionou imediatamente as irmãs mais novas. A Graça e eu. Meu cunhado, marido da Tute, tinha um carro grande, uma Caravan, mas não estava em casa e ela não sabia dirigir. Fui dirigindo e fomos as três rumo ao velório. Chovia havia dias e o terreno encontrava-se encharcado. Em decorrência disso, a frente da casinha simples transformara-se em um pequeno pântano preto, cor da terra na região. O acesso à casa, sem cair no lodo, era feito por cima de estreitas tábuas de madeira. Precisava ter um certo equilíbrio para evitar o desastre.

Contornadas as dificuldades, entramos na casinha. O diminutivo é literal, isto é, na sala mal cabia o caixão com o corpo da pobre Lucinda dentro. Esprememo-nos no que sobrava de espaço e por ali ficamos longo tempo, aproveitando para combinar com os parentes os detalhes do enterro. Assumimos o compromisso de estar lá no dia seguinte, na hora combinada, para conduzir o caixão até o cemitério. Havia um detalhe muito importante. Nenhuma de nós três tinha qualquer tipo de experiência com os protocolos de um enterro. Deixamos isso tudo para resolver na hora. A noite já ia avançada quando fomos para nossas casas.

Na manhã seguinte, conforme prometido, na hora combinada estávamos as três irmãs a postos para realizar o féretro. Fomos recebidas por um dos parentes que, aflito, contou-nos que um dos presentes não conseguira dominar a curiosidade e abrira o caixão! Tentaram impedir, alegando que poderia ser “doença pegadiça” (contagiosa) o que tinha levado a Lucinda à morte. Foram voto vencido. Qual não foi a surpresa! O corpo estava nu, embrulhado apenas em um pano branco. Deduz-se daí que a grande preocupação das pessoas do hospital que trouxeram o corpo e pediram veementemente para que o caixão não fosse aberto, tinha sua origem nas precárias condições em que se encontrava o corpo da pobre velhinha. Bastante revoltante mesmo.

Passada a revolta pelo acontecido, seguramos as alças do caixão para levá-lo até o carro do meu cunhado que funcionaria como carro fúnebre. As três irmãs, uma em cada alça e o parente João na quarta alça. E agora? Quem conhecia os protocolos de sepultamento? Ninguém! O que sai primeiro da casa? Os pés, ou a cabeça da falecida? Com o devido perdão da querida Lucinda, ali começou a parte hilária da história. Não lembro como resolvemos o impasse. Provavelmente saiu antes o que estava mais perto da porta porque não havia espaço suficiente na sala para virar o caixão, caso fosse necessário. Para chegar até o carro, precisaríamos passar com o caixão por aquelas tábuas estreitas, lembram? Lodo preto pelos lados? Pois é... tivemos que optar por escolher onde o terreno estava mais firme, então, revezávamos. Os que seguravam as alças do lado direito iam para o sacrifício na lama preta e os da esquerda ficavam em cima das tabuinhas e vice-versa. Ocorre que, a cada movimento de sobe e desce das tábuas, o corpo da Lucinda banlanlanlanlan rolava para lá e para cá dentro do caixão. Era inevitável. E o riso contido também. Todos sabemos que o choro até se pode conter, mas o riso...

Chegamos finalmente ao carro e seguimos para o cemitério. Lá chegados, cada um pegou a sua referida alça e, nesse momento, veio novamente o impasse para entrar no campo santo. Os pés ou a cabeça? Novamente minha memória me nega o detalhe da solução, mas provavelmente seguimos o primeiro conselho gritado por alguém. Entramos no cemitério e seguimos até o local onde havia sido aberta a cova. Na hora em que o caixão ia baixar à sepultura, pela última vez veio a dúvida: o que fica virado para a porta do cemitério. Os pés, ou a cabeça? Não faço a menor ideia. Todos sabem da dificuldade de segurar o riso, principalmente em momentos delicados e sérios. As três tivemos ataques de riso constrangedores. Ao final, todos estavam rindo conosco.

Confesso que fiz minhas preces, como faço até hoje, pela Lucinda e seus irmãos. Foi bem divertido na época, diversão essa provocada pela nossa ignorância em assuntos funerários. Sinceramente? Não sei ainda a que se dá prioridade nesses momentos. Aos pés, ou à cabeça? Um conhecimento de extrema importância que nunca se sabe quando vai precisar.     

 

 

domingo, 2 de maio de 2021

Abre-se mais um cantinho na memória... (parte V)


 

Cabe-me, neste momento, fazer uma importante menção aos canteiros de hortênsias que ladeavam a entrada da casa, tão cuidadosamente cultivados por minha mãe. Eram tão lindas essas hortênsias a ponto de hoje eu ter certeza de que elas floresciam o ano inteiro. Coisas da minha imaginação. Gosto muito dessa flor. Deve ser por causa dos canteiros da minha infância.

Estávamos entrando na cozinha, lembram? Era enorme! Ocupava toda a extensão da largura da casa e devia ter, por sua vez, de três a quatro metros de largura. Entrava-se pela porta da sala, que ficava mais à esquerda. Logo ali estava um grande fogão a lenha, onde minha mãe, ou a dona Isabel preparavam os quitutes. E que quitutes! E os gatos deitavam-se na beirada, nos dias frios de inverno. Ali minha mãe costumava colocar pequenos caixotes de sabão para nos sentarmos e nos aquecermos depois do banho. Nunca ninguém se queimou, felizmente.

Caminhando para a direita, havia de um lado a pia e do outro a máquina de costura da minha mãe. Havia também uma outra máquina de costura mais antiga, sem uso. Nessa brincávamos de carrinho no pedal ou eu treinava a costura, contornando as figuras das cabeças enormes das Garotas de O Cruzeiro. Mundlos era a marca dessa máquina. Minha mãe usava a Singer, ou Elgin mais nova e moderna.

Adiante estava a mesa bem grande onde todos nos acomodávamos para as refeições. Ninguém sentava à mesa antes de meu pai, como também ninguém se servia antes dele. Coisas de um patriarcado, em que o pai era um militar reformado. Para ocupar os lugares à mesa, havia hierarquia. O pai na cabeceira, a mãe ao lado direito do pai, depois vinham os irmãos mais velhos até chegar na caçula. Eu. Nunca me senti diminuída ou em desvantagem por causa disso. Era muito natural. Quando havia visita para alguma refeição, ocupava o lugar do irmão mais velho, à esquerda do pai.

Há uma passagem divertida sobre isso. Numa certa noite, meu pai recebeu a visita de um político na hora em que íamos jantar. E não tinha essa história de “vão comendo que eu já venho...” Ficamos esperando meu pai para nos sentarmos para jantar. A visita não ia embora e a fome nos castigava. Fizemos, então, aquela simpatia de colocar uma vassoura com as cerdas para cima e um garfo enfiado nessas cerdas. Dizia a lenda que essa prática fazia com que a visita fosse embora logo. Não deu certo dessa vez. E pior. Meu pai, como o deputado não fosse embora e a fome estivesse apertando seu estômago, sem alternativa, o convidou para jantar, convite que foi aceito imediatamente. E vieram os dois para a cozinha, sem ao menos dar tempo de tirarmos a vassoura. O deputado na frente, abriu a porta e a vassoura lhe caiu nos pés. Constrangimento total, sem poder dar risada, mas a vontade era tanta, que não vi como minha mãe disfarçou a situação embaraçosa. Se ele percebeu, foi elegante e não demonstrou nada. Essa história de simpatia... melhor não confiar.

Pela janela do lado esquerdo da mesa, podia-se visualizar os fundos do quintal e aquela citada aroeira que recebia os sabiás famintos e eram abatidos para serem servidos como canja no jantar. Esse procedimento era bastante esporádico, mas muito marcante para mim. Finalizando o espaço da cozinha havia uma janela que se abria para a ruazinha, hoje Rua Rio de Janeiro. Na lateral, havia a porta do nosso quarto azul e ao lado, a escada que levava ao sótão.

Ah, o sótão!... Era um espaço enorme em que, somente uma parte possuía assoalho. Sem janelas, nem claraboia, chegava a provocar um certo temor. Até porque, quando meus pais viajavam ou saíam para demorar mais, era bem lá que ficávamos com as meninas que vinham com sua mãe posar em nossa casa para nos fazer companhia. Elas dormiam ali no sótão e, depois do jantar, tinham início as narrativas de histórias de terror, na maioria fatos reais, segundo elas, com personagens do folclore brasileiro. Boitatá, Mula sem cabeça, Saci e Lobisomem, que vinham depois povoar nossos pesadelos. Mas durante o dia era palco das brincadeiras de boneca ou teatro.

Ali existiam, para mim, tesouros inimagináveis. Pilhas, maiores do que eu, de revistas. O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos e as Seleções do Reader’s Digest, para o meu pai. Era a sua outra comunicação com o mundo, depois do rádio. Para minha irmã mais velha, as proibitivas revistas de fotonovelas. Para meu irmão, os gibis e para mim e minha irmã, as historinhas em quadrinhos da Disney, Bolinha, Luluzinha, e todas as outras que meu pai encontrava na banca quando ia para Joinville. Trazia também livros para mim, revistas e aquarela para minha irmã, que gostava de pintar e meu irmão ganhava muito Ringo Kid, Roy Rogers e tantos outros. Eu lia tudo. Até as fotonovelas eu lia, escondido.

Meu pai tinha um rádio de cabeceira, bem grande, para ouvir as primeiras notícias do dia. Passado o noticiário, vinha a cantoria de música caipira. Lindas e apaixonadas letras entoadas em melodias não menos agradáveis. Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho e vai por aí. Logo em seguida todos levantávamos para saborear o café da manhã e se podia, então, ouvir o Lori e o Amazor, filhos do compadre Bagrinho pescador (desculpem, não sei o nome dele) passar pela ruazinha cantando, a plenos pulmões, as mesmas músicas ouvidas minutos antes. Gostosa memória.

Fecha-se aqui a janela da minha memória, através da qual pude enxergar nitidamente e fazer relatos deliciosos do meu cantinho no mundo. Sei que me estendi e, por isso, me penitencio junto a meus leitores. Tenho ainda muitas histórias para contar e o farei.

Procuro evitar até onde posso as expressões do tipo “ no meu tempo...” Esse foi meu tempo. Driblei todas as dificuldades e tristezas. Elas aconteceram, mas as deixarei presas no passado, liberando apenas as alegrias.

Se meu tempo foi melhor, ou pior não sei dizer. Digo apenas que foi bem diferente. A imensa maioria das crianças da atualidade não se encaixaria nessa realidade que descrevi. Ganham em tecnologia e perdem em imaginação, criatividade e contato direto com a natureza. O que fica como conclusão final é que cada um, a sua maneira, é feliz com o que tem ao alcance de suas possibilidades.

 

domingo, 25 de abril de 2021

Abre-se mais um cantinho da memória... (parte IV)

 


 

Na parte III desta série de memórias, mencionei minha intenção de entrar em casa. Vou fazer isso, não sem antes falar sobre o poço, que nos garantia a sobrevivência, pois ninguém vive sem água, pois não?

Ficava localizado nos fundos da casa, quase dentro dela. Era largo e tinha pouca profundidade. Dele nos servíamos de água praticamente aquecida nas manhãs de inverno e, no verão, garantia a degustação das melancias muito frescas. Estas eram bem amarradas com cordas e, no início da manhã, colocadas dentro da água para, na hora da sobremesa, serem retiradas e saboreadas. Estavam, então, frescas e deliciosas. Criatividade acima da dificuldade da falta de energia elétrica. Nosso poço nunca nos negava água. Quando a vizinhança ficava sem, na temporada de verão, para nós isso não era problema. Até socorríamos um ou outro vizinho nas horas de necessidade do precioso líquido. 

Periodicamente ele era esvaziado para limpeza e purificação. Nessas horas entrava um personagem importante. O seu Osni Cacuá. Era aquele pau para toda obra tão necessário e que existe em todos os lugares. Ele tirava toda a água do poço, limpava bem as paredes e colocava cal no fundo. Pronto. Imediatamente começava a fluir água limpa e esterilizada. Um episódio peculiar aconteceu quando meu cunhado Alcides, ao chegar da praia, foi até o poço tirar um balde d’água e, ao se abaixar, seus documentos, que estavam no bolso da camisa, caíram lá para dentro. Quem iria resgatá-los? Eu, pequena e muito magrinha, fui. Com ajuda, desci até a água e peguei os documentos encharcados. Escrevendo aqui, vivo a mesma sensação que senti naquela hora. O ar me falta. Deve ter sido nesse momento que percebi, mesmo sem o saber, que sou claustrofóbica.

Agora podemos entrar em casa. Por favor, pela porta da frente! Havia na entrada uma pequena varanda, depois entrava-se na sala ampla, decorada com poltronas simples, aliás, tudo era deliciosamente simples, no mesmo ambiente, a mesa com quatro cadeiras, onde as refeições eram servidas, somente para visitas. Os quatro quartos ficavam ao lado dessa sala. Um grande e inesquecível balcão encostado na parede dos fundos, fechava a decoração. Piso com tábuas largas, sem cera ou qualquer outro revestimento. O piso da casa inteira era lavado com água e sabão toda sexta feira.

À esquerda havia a passagem para a cozinha. Nesse espaçozinho havia apenas uma pequena prateleira que sustentava um dos veículos de comunicação da família. O rádio! Uma das conexões com o mundo. Sintonizava-se emissoras de São Paulo e Rio de Janeiro, tal era a potência do alcance das suas ondas médias, curtas e muito chiado. Nos dias de faxina, a rádio Nacional de São Paulo, ou a rádio Tupy do Rio de Janeiro davam conta da trilha sonora. Belas lembranças. Na hora do Repórter Esso, o silêncio precisava ser sepulcral. Ainda trago na memória a música que introduzia esse noticiário.

Nesse rádio também, nas tardes de muito trabalho manual e bordado, minha irmã mais velha e minha mãe ouviam as radionovelas chorosas. Essas eram proibidas para nós crianças, mas, exatamente às dezoito horas, entrávamos afoitos para acompanhar “Jerônimo, o herói do sertão”. Esse era o protagonista do folhetim, mas tinha a Aninha, sua namorada, o Moleque Saci, o Corisco e outros personagens que agora me fogem à memória. Era lindo e empolgante! 

Lembro de ter ouvido nesse rádio alguma coisa dos jogos da copa do mundo na Suécia, em 1958. O Brasil foi campeão. A transmissão era feita diretamente de lá. Imagine a qualidade. Ouvia-se algumas jogadas claramente para, logo em seguida, vir um chiado que impedia qualquer entendimento. De qualquer forma, festejamos a vitória da seleção brasileira. Os meninos disputavam umas pecas que foram lançadas na época em comemoração ao evento. As suecas. Acinzentadas e opacas, eram bonitas e desejadas. Outra atração radiofônica que não perdíamos era, na Semana Santa, a Paixão de Cristo. A voz do Roberto Faissal representando Jesus era de levar às lágrimas. Ou seria o Floriano Faissal o Jesus. Não tenho certeza, mas sei que ambas as vozes eram lindíssimas.

Embora tenha ainda muitas histórias a serem contadas, devo interromper a narrativa por causa da extensão do texto. Vou continuar. Muito provavelmente, devo concluir na quinta parte. Não quero cansar meus fieis leitores. Por isso, repito.

Continua.

sábado, 17 de abril de 2021

 

Abre-se mais um cantinho da memória... (parte III)

 

A janela continua aberta. Aproveito, então, para continuar a narrativa antes que ela resolva se fechar e as memórias se escondam irremediavelmente em um cantinho onde eu não possa encontrá-las mais.

Estava comentando sobre o quintal da minha casa. Aquele que se assemelhava a um parque de diversões, embora em meu tempo de criança, nem sonhava com o que seria um. Mais tarde, já éramos grandinhas, aparecia por lá um parque que ficava instalado em um terreno de propriedade da família, bem ao lado da nossa casa e, por isso, ganhávamos um ingresso livre e permanente. Podíamos usufruir dos brinquedos ilimitadamente, sem custo. As Maninhas, Marilda e Marília, a Polaca, Rosali Ravache, minha inseparável irmã Graça e eu não saíamos dali. Nossas aventuras no Chapéu Mexicano são inesquecíveis. Eu sentia que tocava o céu!

Retomando as brincadeiras da infância... não tínhamos bicicleta assim, física, mas nossa imaginação inventiva usava a criatividade e dávamos nosso jeito. Bastava tirar dois sarrafos da cerca e sentar no vão deixado por eles. Um dos sarrafos era colocado no vão seguinte. Era o guidão. O outro era colocado na travessa inferior da cerca. Era o pedal. Fazíamos altos pedais, embora faltasse total conforto no selim. Nunca esquecendo de recolocar os sarrafos no lugar depois dos “passeios”. Sobre aventuras de bicicleta, tem aquela em que a Graça e eu pegamos a bicicleta da nossa irmã mais velha enquanto ela estava no trabalho e fomos passear. Mas a tal bicicleta era muito grande para andarmos sozinhas, então resolvemos ir cada uma em um pedal. Fomos pela ruazinha, depois nomeada de Rua Rio de Janeiro. Ela subia e eu descia... e vice-versa. Muito gostoso. Até a primeira curva. Ao virarmos a esquina, tombamos dentro de uma vala que dava vazão às águas pluviais que, felizmente, estava seca. Eu caí no fundo da vala, a bicicleta por cima de mim e a Graça por cima da bicicleta. Uma tragédia! Nem podíamos nos queixar de dor. Colocamos a bicicleta no lugar direitinho e ... silêncio!

Nossa casa era fixada em cima de pilares de tijolos na parte leste para ficar nivelada. Ficava ali embaixo da casa um espaço que utilizávamos para brincar de carrinho. Meu irmão Mário, a Graça e eu tínhamos nossos “autinhos” e ali construíamos nossa cidade. Com pistas de rolamento e tudo o mais que nosso limitado conhecimento imaginava que uma cidade pudesse ter, quer dizer, quase nada. Passávamos tardes memoráveis nessa atividade. O único e grande problema eram as cabeçadas nos caibros enormes que sustentavam a casa. À noite, com alguns galos em nossas cabeças, colocávamos os veículos todos na garagem, que ficava embaixo da cama de cada um. Na época de Páscoa, as carrocerias dos caminhõezinhos amanheciam carregadas de ovinhos de chocolate. Minha mãe era pura doçura e carinho conosco.

Em minha infância, tinha sempre ao alcance da mão uma variedade de frutas retiradas diretamente do pé. Dentro do galinheiro, havia uma goiabeira pequena que dava deliciosas goiabas brancas, doces como mel. Atrás da garagem era um limoeiro cujos frutos bem alaranjados, rendiam saborosas limonadas. Mas nada se compara ao pé de cereja que, somente há muito pouco tempo vim a saber que não era uma cerejeira e sim um pé de jamelão. Oh... que dó se saber enganada. Coisas da simplicidade. De qualquer forma essa, para nós, cerejeira ficava bem rente à nossa cerca, mas para o lado do vizinho, o senhor Arnoldo Luz. Esses frutos, seja lá o que fossem, amadureciam bem no final do verão, já início de outono e eram nossa sobremesa. Depois do almoço, nós três crianças subíamos na árvore e nos deliciávamos com aquele saboroso fruto de cor vermelha bem escura, quase preta. E comíamos tanto até ficar sem ar, “embaçados”, como intitulávamos aquele sintoma. Às vezes, acontecia o imprevisto de sermos flagrados pela sogra do vizinho. A descida da árvore era relâmpago. Deslizávamos pelos galhos que pendiam em nosso terreno e, sem demora, estávamos na segurança de nossa propriedade. Houve um contratempo em certa ocasião em que o Marinho caiu de mau jeito do galho da árvore e desmaiou. Ai que susto! Qual não foi nosso alívio ao vê-lo levantar-se quase em seguida. Estava recuperado. Ufa!  

Meu irmão recebia os amigos em casa e, então, o quintal virava uma verdadeira oficina de brinquedos. Eram pandorgas, bodoques, campeonato de peca, arco de arame impulsionado por outro arame reto com gancho, catapoca e uma variedade de brinquedos fabricados de acordo com a época. Brincadeiras sazonais.  Quando jovens, todos os amigos da cidade saíam para estudar em colégio interno. Nas férias, todos nos reuníamos na minha casa para jogar pingue pongue, ou tênis de mesa, como queiram. E a saudade aperta e desaperta dentro do peito. Nós meninas também tínhamos brincadeiras sazonais. Havia o tempo de brincar de bonecas, em outros tempos brincávamos de casinha e de cozinhada. Quando a cozinhada era na casa das Maninhas, até a mãe dela almoçava com a gente. Algumas iguarias feitas nessas ocasiões eu nunca mais saboreei, mas lembro serem deliciosas. Por vezes, nossa atividade era o teatro. Verdadeiras superproduções! Outra brincadeira que não me esqueço era a de socar baga. Quando as sementes do sombreiro secavam, ao socar e abrir a casca, dela se retirava uma amêndoa de inigualável sabor. Tinha uma época certa do ano para se fazer isso. Pular corda, amarelinha e cinco Marias. Para esta última brincadeira, confeccionávamos saquinhos, um mais lindo do que o outro e os enchíamos de areia. Matéria prima farta na praia. Havia também as brincadeiras no mar e na lagoa. Ah... essas merecerão um texto só para elas.

Para encerrar essa narrativa de nosso precioso quintal, devo mencionar que o gramado que ficava à leste da casa, nos tempos de nossa juventude, servia de palco para, nas madrugadas de verão, os garotos fazerem serenatas, cantando e tocando canções românticas e muito ié ié ié. Traziam um aparato com violões, chocalhos, marimba e outros instrumentos. Um verdadeiro concerto! Lembro de meus pais saírem do quarto deles com os pescoços doloridos por ficarem com a cabeça levantada do travesseiro na tentativa de não perder um só acorde da linda cantoria. Mais saudade!...

Interrompo novamente este relato das minhas memórias da infância privilegiada que tive, porque o texto atingiu um tamanho razoável. Pretendo retomá-lo em outro momento para, então, entrar em casa. As lembranças de minha casa são igualmente gostosas de lembrar e sei que o meu leitor irá gostar também de ler. Repito, então.

Continua...

terça-feira, 13 de abril de 2021

Abre-se mais um cantinho da memória... (parte II)


 

Retomando a narrativa, onde eu falava sobre o quintal da minha casa se assemelhar a um zoológico. Meu pai sempre teve cachorros. De raça ou sem raça, eles faziam parte de nosso dia a dia, junto com os da minha irmã Graça e até eu, que não era lá muito fã de pelos, tive um que ganhei de presente da irmã Tute (Sueli). Além dos gatos, pai, mãe e filhotes, que a Graça cuidava com todo amor e cuidado.

Houve um tempo em que meu pai trouxe para casa, a fim de fornecer leite saudável e forte para a família, uma cabra com três graciosos cabritinhos. Todos branquinhos, eles eram muito engraçadinhos. Às vezes, sem nenhum estímulo, punham-se a pular no mesmo lugar os três ao mesmo tempo. Um encanto!

 Em outro momento, apareceu com um casal de coelhos. Em pouco tempo já eram trinta e dois bichinhos e aumentando aceleradamente. Claro que foi intimado a se livrar deles sem demora. Muito difícil mantê-los em casa. Mas eram tão bonitinhos!...

A parelha de éguas mais a carroça tinham finalidade funcional. Serviam de transporte para pequenos deslocamentos. Em determinadas épocas, meu pai achava necessário que as éguas se alimentassem de capim salgado e pedia para que as levássemos à praia da península, chamada Coreia na época. Minha irmã e eu as levávamos montadas em pelo, sem sela, nem arreio, apenas com um cabresto na boca para que pudessem ser direcionadas para esquerda, direita ou parar. Em uma dessas ocasiões, ao retornarmos com os animais para casa, fomos surpreendidas por uma maré de lua, quando, em alguns trechos, o mar emendava, emenda até hoje, com a lagoa. Seguimos montadas, as éguas com água quase batendo na barriga. Foi forte a adrenalina! Forte também foi a experiência das crinas que foram trançadas sem que pudéssemos encontrar explicação plausível para o fato. Contei essa passagem na crônica: Seria o saci, ou a velha cabeluda, neste mesmo veículo.

Porém nada se compara ao galinheiro, em diversidade animal. Ali conviviam as donas da casa, as galinhas, com perus, marrecos e até um curral, onde eram criados dois gordos leitões. Foi em cima do telhado desse curral que minha irmã e eu subimos e, de lá, atirávamos, displicentes, os grãos de milho para as galinhas. Para total surpresa, e não menor assombro, o telhado não resistiu e foi abaixo. Nós duas vimo-nos sentadas no chão do curral com pedaços de telha caindo em nossa cabeça. Não sei se o leitor já viveu a experiência de rir e chorar ao mesmo tempo. Foi isso que vivemos, uma olhando para a outra. Com direito à bronca posterior, justa, por sinal. As galinhas eram maioria. Nos finais de tarde, meus pais as soltavam para que comessem os brotinhos da grama. Era um festival de cocoricós! Às sextas feiras, eles aproveitavam a exposição de galináceos para escolher aquela que seria o almoço de domingo. A escolhida era isolada embaixo de uma caixa a fim de fazer a dieta necessária antes do abate. Penso, atualmente, o quanto isso me causa estranheza. Estranho também, mas absolutamente normal para a época, era o fato de meu pai manter sua espingarda de caça ao alcance das mãos enquanto almoçava, na época do inverno. Do seu lugar à mesa, ele visualizava, pela janela, um lindo pé de aroeira, onde pousavam sabiás gordinhos, oferecendo-se para a canja do jantar. Ele apoiava os braços na mesa de refeição segurando a espingarda, fazia a mira e atirava. E lá íamos nós, felizes, buscar o precioso ingrediente do jantar. Ele nunca errava um único tiro. Lembro de não apreciar, nem comer essa dita canja.

Houve um tempo em que tínhamos quarenta galinhas vermelhas, de raça, que punham ovos igualmente vermelhos diariamente. Meus pais estavam sozinhos em casa, pois nós todos estávamos fora de Barra Velha estudando e aquela produção diária de ovos não dava trégua. Todos os vizinhos ganhavam ovos. Meu irmão mais velho, Ubiratan, que ia para casa todos os finais de semana, quase virou um lagarto de tanta gemada que comia. Resultado da superpopulação de galinhas e consequente produção diária de ovos: as penosas tiveram que virar almoço. Tempos de fartura!

Meu pai trabalhava na Prefeitura, que ficava duas casas acima da nossa, na mesma rua. Todos os dias, no lanche das dez horas, minha mãe preparava um Toddy e nele colocava uma gema crua, que ficava ali boiando. Pedia para que nós levássemos esse lanche para ele no trabalho. Essa missão nós compartilhávamos com nossas amigas Maninhas, as gêmeas Marilda e Marília. Somos amigas desde então e até hoje elas lembram do Toddy que levávamos para o meu pai no trabalho. O nosso Toddy também tinha uma gema crua. Passei esse hábito para minhas filhas. Elas adoravam e, se deixasse, comiam até meia dúzia em um só dia. Exagero. Apenas uma por dia.

Entre o gramado do lado oeste e a casa, havia um espaço de areia compacta, onde meus sobrinhos, Júnior, Mário Luiz, e eu jogávamos futebol. Os dois controlavam a bola e chutavam em gol. A goleira era eu. Muito bom isso. Temos pouca diferença de idade. Eles também têm na memória esses momentos divertidos.

Aquele quintal era nosso parque de diversões. A diversidade das brincadeiras era enorme. Sem tecnologia nenhuma, nos divertíamos com o que tínhamos à mão. A criatividade e a imaginação impulsionavam a criação dos brinquedos e das brincadeiras. Sapatos feitos de lata, que eram furadas no fundo de fora para dentro. Ali se colocava um cordão comprido que ligava as duas latas, para segurar com as mãos. Colocava-se os pés em cima das latas fixando o cordão entre os dedos. Apostávamos corrida usando aquele instrumento. Claro que os tombos eram espetaculares! Além dos dedos e pés bem machucados. Com as latas de leite em pó, farinha láctea e outros conteúdos, fabricavam-se carrinhos para puxar. Cinco, seis ou mais latas cheias de areia recebiam uma segunda carga em cima. Essas rodavam para trás, enquanto as de baixo rodavam para frente. Havia disputa entre os meninos da redondeza para ver quem fabricava o maior carrinho. E tome corridas, derrapadas e capotamentos! E a imaginação a mil!

Olhem aí o texto atingindo o tamanho ideal novamente. É hora de interromper a narrativa. Direi novamente.

Continua...  

      

domingo, 11 de abril de 2021

Abre-se mais um cantinho na memória - uma janela para a infância

 

 

Morávamos em um espaçoso bangalô de madeira com quatro quartos construído em um terreno de pouco mais de setecentos metros quadrados. Ali, nesse espaço exíguo, tínhamos tudo o que uma pequena chácara pode conter. A trinta metros para leste ficava a lagoa de Barra Velha. Mais alguns metros e lá estava o mar. Ah... o mar!...

Um prolongamento na parte de trás da casa, abrigava banheiro, lavanderia e mais tudo o que não podia estar no interior da casa. Um depósito de trecos importantes e necessários para uma ocasião de serventia. Isto é: tudo o que se possa imaginar.

Havia grandes gramados nos dois lados da casa.  Ao abrir a janela do nosso quarto, meu, da minha irmã e do meu irmão, que ficava voltado para o lado do mar, deparávamo-nos com um desses gramados, onde havia uma rede. Esse era o local em que minha irmã e eu gostávamos de ficar ora balançando na rede, ora deitadas de costas na grama observando as nuvens. “Vai desaparecer... vai desparecer... vai desaparecer...”, repetíamos, e lá se iam elas povoar o imaginário de outras crianças em outro lugar longínquo. E, ainda apreciando as nuvens, encontrávamos muitos personagens que, por certo, moravam por aquelas bandas. Eram cães, cavalos, peixes e tantos outros os quais nossa visão infantil aguçada nos permitia descobrir. Era ali que fazíamos o lanche da tarde, que tomávamos a deliciosa limonada, feita com os limões colhidos em nosso quintal.

No outro lado da casa havia outro verdejante gramado. Um razoável espaço em frente a ele era reservado para o jardim da minha mãe. Ela desenhava os canteiros e contava com a ajuda de um menino contratado para a execução de seu arrojado projeto. Mudava várias vezes ao longo do ano, de acordo com as flores de cada estação. As pessoas que passavam pela rua paravam para apreciar a beleza do jardim tão bem cuidado e com tanto bom gosto. Ficava mesmo maravilhoso. Esse gramado tinha tripla finalidade. Estender as roupas para secar num varal construído sobre ele, colocar as roupas mais encardidas na grama para que o sol as alvejasse e, quando já éramos maiores, virava nossa quadra de vôlei.

Nos fundos do quintal ficava a horta. Eram várias leiras organizadas pela minha mãe e seu ajudante, onde ela cultivava toda sorte de verduras e legumes. Meu pai se encarregava de não deixar faltar muita terra fértil e insumos para que tivéssemos uma alimentação saudável. Foi nesse lugar que minha irmã Graça e eu estávamos brincando de acertar com pedras a cerca da vizinha, a frau Salfer. De repente, um pintinho que estava ali, no lugar errado, na hora errada, rodopiou e caiu sem vida! Falei: - Guria! Tu mataste o pintinho! E ela: - Não! Deu um “ar” nele! Pode ver a marca da pedra que eu atirei aqui na cerca! Nunca irei saber o que, ou quem tirou a vida daquele pobre animalzinho que, rebelde, fugira de sua mãe. Até hoje lembramos essa história e nos colocamos a dar risadas.

Entre o prolongamento da casa e a horta ainda havia uma enorme árvore frondosa. Linda! Ao lado, mais tarde, foi construída a garagem, sacrificando boa parte do galinheiro que ficava também nos fundos do quintal, mas na extremidade oeste. Minha casa, a casa da minha infância, era um mini zoológico, dada a quantidade de animais que criávamos. Essa era tarefa do meu pai. Ele gostava de caçar então tinha um bom cachorro de caça e outros menores para ajudar na captura. Um de seus cães, o Patusco, foi morto, atropelado por um avião. Explico. O senhor Alonso Braga, um fazendeiro do sul de São Paulo, tinha casa de veraneio no centro da vila e uma propriedade mais afastada onde criava bois zebu. Pois bem. Esse fazendeiro tinha um filho aviador que aterrissava seu teco-teco em plena faixa de areia da praia, bem em frente à casa de seu pai. Na época, a faixa de areia era bem extensa e firme. Em um momento desses, meu pai passava por ali com Patusco, que correu a latir para aquele estranho objeto, quando o trem de pouso bateu violentamente em sua cabeça. Lamentável!

Com esse trágico episódio interrompo aqui essa narrativa, pois ela já atingiu um tamanho máximo para não cansar meus leitores. No entanto há ainda muito o que registrar sobre o que vejo nessa janela recém-aberta pela minha memória.

Irei retomá-lo em outro momento, antes que que ela se feche. Direi apenas,

Continua...

domingo, 28 de março de 2021

A historia de amor entre a bela caiçara e o jovem burguês


 

Essa bucólica historinha é baseada em fatos reais. Ela me foi contada por alguém, cuja identidade a minha memória teima em esconder. Vou vesti-la com trajes românticos, mas todos sabemos que a realidade nem sempre corresponde aos nossos sonhos e fantasias.

Eles formavam o casal mais improvável da pacata cidade. Ele, membro de aristocrática família recém vinda de Portugal, cujo patriarca ocupava cargo importante na diplomacia política da época. Um jovem que, como em qualquer família burguesa, vinha sendo educado para seguir uma carreira brilhante, fazer um “bom” casamento e ter uma vida normal, de acordo com os costumes e padrões da alta sociedade local. Aliás, ainda é assim em qualquer sociedade atual. Acontece que, ter uma vida normal, não estava nos planos do nosso personagem. Ele era considerado a alma livre da família.

Ela, uma caiçara, com ascendência muito próxima dos indígenas que por ali viviam desde tempos imemoriais, os donos da terra. Dela, pouco ou nada se sabe. Infelizmente. A única informação que se tem dela: era uma índia! Muito embora hoje saibamos tratar-se de um ser humano ímpar, dona de um coração capaz de grandes obras, de belíssimas atitudes.

E o jovem burguês, em busca de aventuras, conheceu a bela caiçara e os dois envolveram-se em um romance inconsequente. Apaixonaram-se e já faziam planos de uma vida a dois, logo desencorajados pela família dele. Toda a luta foi vã. Não o levaram a sério.

Não demorou muito para que a bela caiçara anunciasse a vinda de um herdeiro. E agora? O que fazer? Sem nenhum apoio da família, resolveram embarcar para o sul, onde tinham conhecidos que moravam em Joinville, para tentar iniciar a vida a dois, quase três.

Assim planejaram, assim fizeram. O casal embarcou em um barco a vapor e rumou para onde acreditavam encontrar seu futuro e sua felicidade. A cidade de Joinville, em Santa Catarina.

Chegaram ao Porto de São Francisco do Sul e entraram, pela Baía da Babitonga, na Lagoa de Saguassu. Desta rumaram, pelo rio Cachoeira, até o porto do Bucarein. Estavam em Joinville. Cabe aqui salientar o desconforto sofrido por nossa personagem nessa viagem tão difícil, em plena primeira gestação, inexperiente e sem orientação

Afinal, foram bem recebidos pelos amigos, moradores do local e acabaram ficando na cidade por algum tempo. Cerca de três anos. Vivia-se, nesse tempo, o ano de 1917. O jovem burguês obrigou-se a arranjar um trabalho, pois a chegada de seu primogênito era iminente. Exerceu o ofício de padeiro. Em outubro nasce o bebê. Uma menina! Não demorou quase nada, talvez uns dois anos e outra menina veio a nascer.

A família aumentando, junto com ela os compromissos e a responsabilidade. O casal decidiu então voltar para a cidade de onde haviam saído anos antes. Ali estavam suas raízes, quem sabe apareceriam melhores oportunidades para criar suas filhas.

Ali nasceram mais uma menina, a terceira filha, e o único filho homem do casal. Era o amor multiplicado por quatro. Família grande, resolveram tentar a sorte na capital. Mudaram-se todos para São Paulo. Aí nasceu a quarta filha. O improvável casal e seus cinco filhos.

A bela caiçara cuidou e amou seu jovem burguês até que a morte o levou. Um amor puro e forte os uniu a ponto de vencerem a barreira do preconceito logo no início de sua união, assim como todos os outros obstáculos que a vida lhes apresentou.

Havia entre eles um amor tão intenso que, passados apenas trinta dias da partida de seu escolhido, ela o acompanhou para, na eternidade, darem continuidade àquela história bucólica do amor entre a bela caiçara e o jovem burguês. O Senhor os abençoa e os ampara a eles e aos filhos, agora todos juntos no ambiente indescritível onde, por certo, devem estar.