quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Cordel dos dias de sonho




Há alguns anos, acompanhei minha irmã Suely, meu cunhado mineiro Cleber, minha sobrinha Rosana e seu marido Edson a um passeio a Minas Gerais, mais precisamente ao sítio Córrego da areia, em Carmópolis de Minas.
Não imaginava que seriam dias tão marcantes para mim. A qualidade de cidadão que é meu cunhado já me dava pistas do quanto é maravilhoso aquele povo mineiro. Não me enganei.
Comemorava-se os oitenta anos de vida do Clóvis, irmão de meu cunhado, um anfitrião impecável, junto com sua Teresa, filhos, netos e agregados. Difícil destacar algum deles. Todos notáveis! Uma cavalgada com participação de toda a família e da vizinhança amiga, comes, bebes e danças marcaram os festejos.
Escrevi um cordel para perpetuar aqueles dias inesquecíveis de tão agradável convivência. Alguns personagens importantes, no entanto, não foram citados nos versos. Faço justiça. A Priscila e seu irmão Dudu, o Pedro e sua irmã Ana Paula e o Gustavo, irmão do Artur, cada um a sua maneira, esmeraram-se para que aqueles fossem dias de sonho. Conseguiram!

Um tempo vivido há pouco
Não vou esquecer jamais
O povo e o lugar tampouco
E deu-se em Minas Gerais.

Um patriarca do bem,
Por todos muito querido,
Em sua casa ninguém
Se sente triste, abatido.

O Clóvis e a Teresa
Pessoas demais da conta,
Disso tenho a certeza
Tanta bondade desmonta.

O sítio, a natureza
Que, de tão simples, impacta.
Gente boa, farta mesa
O dia a dia retrata.

O Beto, a quem chamam Gordo,
A mim não engana, não.
Muito maior que seu corpo
Com certeza é o coração.

A Bete, a Carla e a Cássia,  
Mulheres de decisão.
Afirmo, não é falácia,
a todos dão atenção.

E as Teresas, que encanto!
As das pontas e a do meio.
Não escolho e aqui canto,
sua bondade alardeio.

Não poderia esquecer
O Flávio, um trabalhador.
Que no futuro há de ser
Um grande vereador.

Por tanto desprendimento
Fica em mim um grande saldo
Também o agradecimento
Ao casal Tê e Evaldo.

Também canto as crianças
Marco Antônio, Artur, Luiza,
Brincadeiras, comilanças,
Preocupar não precisa.

Quero aqui agradecer
A todos e até suponho
No futuro reviver
Aqueles dias de sonho!



quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um sobrevivente



O vento sul violento fustiga a minha janela e com ele lembranças, nem sempre felizes, batem à porta do meu consciente.
Na minha infância, em Barra Velha, a casa da minha avó ficava ao lado da nossa. Bastava atravessar a ruazinha e pular uma valeta para se estar lá. No seu quintal havia dois coqueiros gêmeos, altos, tão altos que pareciam tocar o céu. Provavelmente, ali se alimentavam os caxinguelês. 
No inverno, em dias de tempo ruim, o vento sul passava forte entre eles e, assobiando, entoava seu canto de morte. No dia seguinte a praia amanhecia triste e os pescadores, desolados, se organizavam para resgatar algum companheiro que não voltara do mar. Até hoje sinto arrepios ao ouvir o som desse vento chicoteando na janela.
Dias atrás fui visitar um pescador e sua esposa, antigos conhecidos, ambos já com mais de oitenta anos. O Servinato e a Mariquinha. Ele doente, com alguma dificuldade para falar, mas a memória, ainda intacta, permitiu que me narrasse sua luta ferrenha frente ao temido vento sul, o nosso conhecido sueste.
Saíram, ele e um companheiro, mais ou menos às três horas da manhã, para buscar as redes colocadas dias antes nas proximidades da laje grande, local distante da praia, mas de pescaria farta.
Lá pelas tantas foram surpreendidos pelo temporal com vento e chuva fortes. A canoa girou descontrolada, a rede se enroscou na hélice do motor e o barco virou. Tudo escuro, um breu, o ar e a água gelados. Além de lutar pela sobrevivência, havia a preocupação de não perder os equipamentos, conseguidos com tanto custo. Ele se segurou na canoa tombada e permaneceu na água, enquanto seu companheiro resolveu revezar o paradeiro entre o topo de uma pedra da laje e a água, na intenção de driblar o frio. Mas a temperatura ambiente estava muito baixa.  Quando percebeu seu amigo sentado na pedra por muito tempo, alertou-o para que pulasse na água que, por mais fria que pudesse estar ainda era mais quente do que fora dela. Foi nesse momento que viu seu amigo cair na água e afundar “encarangado”, no dizer do Servinato. Estava congelado!
Conta que ficou ali, lamentando o desaparecimento do companheiro, rezando e procurando se proteger da tempestade de todas as maneiras até o dia amanhecer. A chuva e o vento continuavam implacáveis, impedindo qualquer tentativa de resgate. Foi somente no final da tarde que uma equipe de corajosos conseguiu localizá-lo e trazê-lo para terra, já praticamente sem forças. Demorasse o socorro mais alguns minutos e não o teriam encontrado com vida.
Definitivamente não era a sua hora que, por sinal, demorou a chegar.  Viveu ainda muitos anos assim barrigudinho, passinhos curtos, cuidando de sua Mariquinha e sendo cuidado de perto por ela, até os noventa anos.

Baleias




 A história que conto a seguir foi retirada da memória do Servinato, pescador artesanal de Barra Velha, Santa Catarina. Tive a felicidade de lhe fazer uma visita há uns dois anos, ocasião em que conversamos longamente. Na época ele estava com 88 anos, sofrera um AVC, mas tinha a Mariquinha sempre a seu lado para lhe amparar em suas dificuldades.
Há poucos dias soube, com tristeza, que desde o dia de Natal de 2013 ele já não mais está no plano físico. Descansa em outras paragens menos sofridas, tenho certeza.

Havia um tempo em que da minha casa era comum ouvir o som das baleias, principalmente à noite. Ora saltando, ora dando barulhentas rabanadas na água, brincando com os filhotes que vinham criar nas águas mais quentes de nossas praias. Ouvia-se também o seu “canto”, algo bem próximo ao que dizem ser o canto das lendárias sereias.
Isso acontecia no inverno, invariavelmente no mês de julho. Lembro-me de como era agradável acordar com os ruídos desses enormes animais marinhos, bem agasalhadinha, do conforto da minha cama quente.
No entanto, conversando com o Servinato, pude perceber o espetáculo por outro ângulo: o do drama!
Pedi a ele que contasse suas experiências no mar com as baleias, nas madrugadas de pescaria. Contou então que elas, as adultas, não ofereciam perigo, mas os filhotes, a quem chamava de baleotes, esses sim eram perigosos, pois investiam contra a canoa. Creio que na tentativa de brincar. Acontece que a embarcação frágil tornava-se vulnerável diante das investidas dos “bebês”.
Nesse momento ele se cala, olha para o chão e fica pensativo. Um filme passando na memória. Em seguida, levanta a cabeça e diz “Mas elas eram ‘macriadas’!” Passa então a relatar a experiência marcante.
Década de 1950, canoa à vela e a remo, seu irmão Ari e ele marcaram de sair para o mar naquela madrugada. E foram os dois munidos de rede, espinhel e puçá buscar o sustento da família. Escuridão total, colocaram os instrumentos de pesca na água e ficaram ali ao sabor das ondas, esperando qual seria o resultado daquela noite de trabalho.
Repentinamente ouviram aquele “grito” e o monstro surgiu de dentro d’água. Uma baleia emergia junto à canoa, emitindo seu som característico. O susto foi tão grande que o Servinato a viu colocando a cabeça na borda da embarcação. O Ari caiu desmaiado no fundo da canoa. Foi o tempo de o companheiro se recuperar, recolher o material às pressas – e que pressa -, içara vela, amarrar o remo que serviria de leme e rezar pedindo vento... muito vento... depois pediram a Deus para que a visitante não resolvesse segui-los. Foram atendidos em ambos os pedidos, haja visto que sobreviveram para a alegria da família e companheiros.
Nesse final da história, o Servinato  não fugiu à regra de bom pescador. Tivesse a baleia colocado a cabeça na borda da embarcação, concorde que os dois irmãos não teriam chegado à praia depois daquela pescaria, nem nós teríamos tido o prazer de ouvir dele essa bela história para eternizar aqui suas aventuras no mar.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Quando eu era pequena...




Houve um tempo em que, ao sentarmos para lanchar à tarde, minhas filhas ainda pequenas e eu ficávamos a conversar sobre assuntos diversos até o momento em que, quase findando o lanche eu lhes dizia:
“Quando eu era pequena...”
Imediatamente as três paravam todas as atividades, bracinhos cruzados em cima da mesa e queixos apoiados nos braços, aguardavam a história da minha infância que seria contada em seguida. Nesses momentos nada mais importava para elas, apenas a ansiedade por ouvir uma historinha vivida num tempo e num espaço inimagináveis para elas. Foram momentos felizes, muito felizes e de agradável lembrança.
Numa dessas tardes contei-lhes a história, que por sua vez me foi contada por meu pai, acontecida quando ele era jovem. Fazendo uma continha rápida, voltaremos, facilmente, à primeira metade do século vinte.  A história era a seguinte:
A capela de Barra Velha havia adquirido, ou recebido como doação, um sino para ser colocado no alto da torre da igreja com a finalidade de chamar os fieis para rezar. A dificuldade surgida é que esse sino havia sido entregue, por engano, na capela da localidade de Penha, distante uns quinze quilômetros e o padre precisaria ir buscá-lo lá. Este, já velhinho e sem recursos, via-se impossibilitado de fazer tal viagem. Foi quando um grupo de jovens destemidos da localidade apresentou-se como voluntário para buscar o sino da capela. Eram três ou quatro rapazes que gostavam de se divertir e serviam-se de qualquer pretexto para viver novas aventuras, fazer brincadeiras e dar boas gargalhadas.
E lá foram eles a pé, nesse tempo não havia estradas e muito menos carros para transitar por elas. Seguiram pelo “carreiro”, um caminho que beirava a praia, utilizado pelas pessoas que faziam esse trajeto, conversando e dando risada.
Algumas horas depois, chegaram finalmente à Penha, pegaram o sino, penduraram-no num pedaço de pau e botaram-se no caminho de volta, revezando-se de dois em dois para carregar o peso.
Vinham, como sempre, se divertindo quando, ao passarem por um trecho denominado Xororom, onde a vegetação cobria o caminho formando uma espécie de túnel, tornando-o escuro e sombrio mesmo de dia, ouviram, ao longe, um trote de cavalo. Um cavaleiro solitário se aproximava. Os rapazes entreolharam-se e nem precisaram falar nada. Esconderam-se no mato com o sino e, em silêncio aguardaram a passagem do cavaleiro pelo local. No momento exato em que o pobre homem passava por aquele trecho sinistro, tocaram violentamente o sino. Ouviram então o galope do cavalo saindo em disparada. Riram até não poder mais, penduraram o sino e seguiram viagem. Pelo caminho encontraram estribos, pelegos, selas e arreios do cavalo fugitivo.
Do cavaleiro nunca ouviram falar. Não conseguiram identificá-lo, nem puderam afirmar sobre sua sobrevivência.


Memória prodígio



Essa história estava guardada num canto da prodigiosa memória do meu muito amado irmão Mário Moura. Ele conta experiências vividas na década de 1950, época de sua infância. Diz:

Ainda bem cedo fui acordado por minha mãe, não sem estranhar, pois estava acostumado a dormir até mais tarde. Ainda sonolento cheguei à cozinha onde encontrei a mesa já pronta para o café. Em cima da mesa estava também uma lancheira contendo o pão d’água, da padaria do sr Orídio, com manteiga fresca, embrulhado em guardanapo de tecido, devidamente bordado e engomado, mais uma laranja já descascada. Era o meu lanchinho. Cabe aqui destacar o sabor daquele pão com aquela manteiga. Inesquecível! O seu Mariano passava pela vila a cada quinze dias vendendo hortaliças, leite e derivados, incluindo a deliciosa manteiga.
Era o meu primeiro dia de aula. Tinha, então, sete anos incompletos. A ” Escolas Reunidas Pedro Paulo Philipi “ me esperava. Um prédio simples, contendo apenas duas salas de aula separadas por um pequeno pátio coberto. Havia um bom espaço livre ao redor desse prédio, para as brincadeiras.
Quando cheguei, estranhei um pouco, fiquei meio desconfiado, afinal tudo era novo para mim. Os primeiros momentos foram um pouco impactantes. Tudo isso logo se dissipou no momento em que surgiu dona Nilda, minha primeira professora. Ela veio receber a mim e a meus amiguinhos. Organizou-nos em uma fila indiana e pediu que estendêssemos o braço esquerdo e colocássemos a mão sobre o ombro do colega da frente, assim manteríamos uma distância regular entre nós. Abaixados os braços entramos na sala de aula onde iniciaríamos a alfabetização. Aos poucos fui me integrando ao grupo. Lembro-me do Cado, do Rito (pronunciado com som de um “r” só), do Jango, do Hugo, da Négila, da Solange, do Humberto, do Argemiro e tantos outros amigos cujos nomes, infelizmente, me fogem da lembrança.
Vivíamos as conquistas da alfabetização, ao mesmo tempo em que a descontração aumentava entre os novos amigos. Fomos, aos poucos, nos adaptando às novas regras da escola. No período da manhã as salas de aula eram ocupadas pelos alunos de primeira e segunda série, enquanto que à tarde frequentavam os maiores, de terceira e quarta.
Os sábados eram dias especiais. Todos os alunos da escola tinham aula pela manhã, divididos em dois turnos: das oito as dez e das dez ao meio dia. Durante a aula, grupos de alunos eram chamados à sala da diretora para fazer a ‘revista’, quando então eram revistadas a limpeza das roupas, orelhas, unhas e couro cabeludo, para evitar epidemia de piolhos. Entre um período e outro era realizada uma homenagem à Bandeira Nacional. Entoávamos o Hino à Bandeira primeiramente e, em seguida, mão direita sobre o peito, era a vez do Hino Nacional Brasileiro. Posteriormente, os alunos que haviam sido selecionados previamente eram chamados para declamar uma poesia. Uma grande emoção era ser presenteado pela professora com um poema para decorar durante a semana e recitar na festividade cívica de sábado.
Passado algum tempo, eu já estava no terceiro ano, talvez, quando foi preparada na escola uma peça de teatro que representava a Independência do Brasil chamada “O grito do Ipiranga”. Meu personagem era nada mais nada menos do que D. Pedro I. Vivi momentos de horror quando, no ponto máximo da apresentação, ao desembainhar a espada para dar o famoso grito de “Independência ou morte”, a danada engatou na cinta e cadê que desengatava! Penso que, se a liberdade do país dependesse de mim, teria atrasado bem uns cinco minutos, para mim, eternos.
E as brincadeiras... eram as mais diversas. Havia o tempo de jogar bola, passava-se daí para a bolinha de gude, “pecas” para nós.  Em outro tempo era eleito o pião... havia um tempo dedicado à confecção de carrinhos de latas de leite em pó. Furavam-se várias latas, umas cinco ou seis, bem no meio do fundo e da tampa. Passava-se por ali um arame e enchiam-se as latas com areia para dar estabilidade e lá íamos nós puxando todo aquele peso, orgulhosos da produção.
O material escolar era levado em uma bolsa retangular, de tecido, pouco maior do que um caderno desses pequenos, com uma alça grande para pendurar no ombro, que chamávamos de cartapaço. Quando as divergências eram acertadas no final da aula, o famoso “te pego na saída”, o cartapaço virava arma de ataque ou defesa. O penal de madeira lá dentro era o causador de galos na cabeça e outras escoriações, ai, ai, ai...
No final do ano, terminando o ano letivo, eram realizadas as provas finais. Os conhecimentos de Aritmética, Português, Conhecimentos Gerais, História, Geografia e Religião eram avaliados no mesmo dia. As provas iniciavam às oito horas da manhã e, como o tempo era insuficiente para responder a todas as questões, alguém da família levava uma marmita com o almoço e almoçávamos ali na escola mesmo. Após um rápido descanso, as provas eram reiniciadas. Terminávamos lá pelo meio da tarde, exaustos.
Dias depois, voltávamos à escola para buscar o boletim com os resultados e para o encerramento que acontecia em grande estilo, com apresentação de peças teatrais e declamação emocionada de poesias.
Assim, nesse ritmo, concluí o curso primário.

Também estudei nessa escola e dela tenho as mais ternas lembranças.  Muito me inspiraram aquelas dedicadas professoras a ser a profissional que fui.
Minha gratidão.