quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um sobrevivente



O vento sul violento fustiga a minha janela e com ele lembranças, nem sempre felizes, batem à porta do meu consciente.
Na minha infância, em Barra Velha, a casa da minha avó ficava ao lado da nossa. Bastava atravessar a ruazinha e pular uma valeta para se estar lá. No seu quintal havia dois coqueiros gêmeos, altos, tão altos que pareciam tocar o céu. Provavelmente, ali se alimentavam os caxinguelês. 
No inverno, em dias de tempo ruim, o vento sul passava forte entre eles e, assobiando, entoava seu canto de morte. No dia seguinte a praia amanhecia triste e os pescadores, desolados, se organizavam para resgatar algum companheiro que não voltara do mar. Até hoje sinto arrepios ao ouvir o som desse vento chicoteando na janela.
Dias atrás fui visitar um pescador e sua esposa, antigos conhecidos, ambos já com mais de oitenta anos. O Servinato e a Mariquinha. Ele doente, com alguma dificuldade para falar, mas a memória, ainda intacta, permitiu que me narrasse sua luta ferrenha frente ao temido vento sul, o nosso conhecido sueste.
Saíram, ele e um companheiro, mais ou menos às três horas da manhã, para buscar as redes colocadas dias antes nas proximidades da laje grande, local distante da praia, mas de pescaria farta.
Lá pelas tantas foram surpreendidos pelo temporal com vento e chuva fortes. A canoa girou descontrolada, a rede se enroscou na hélice do motor e o barco virou. Tudo escuro, um breu, o ar e a água gelados. Além de lutar pela sobrevivência, havia a preocupação de não perder os equipamentos, conseguidos com tanto custo. Ele se segurou na canoa tombada e permaneceu na água, enquanto seu companheiro resolveu revezar o paradeiro entre o topo de uma pedra da laje e a água, na intenção de driblar o frio. Mas a temperatura ambiente estava muito baixa.  Quando percebeu seu amigo sentado na pedra por muito tempo, alertou-o para que pulasse na água que, por mais fria que pudesse estar ainda era mais quente do que fora dela. Foi nesse momento que viu seu amigo cair na água e afundar “encarangado”, no dizer do Servinato. Estava congelado!
Conta que ficou ali, lamentando o desaparecimento do companheiro, rezando e procurando se proteger da tempestade de todas as maneiras até o dia amanhecer. A chuva e o vento continuavam implacáveis, impedindo qualquer tentativa de resgate. Foi somente no final da tarde que uma equipe de corajosos conseguiu localizá-lo e trazê-lo para terra, já praticamente sem forças. Demorasse o socorro mais alguns minutos e não o teriam encontrado com vida.
Definitivamente não era a sua hora que, por sinal, demorou a chegar.  Viveu ainda muitos anos assim barrigudinho, passinhos curtos, cuidando de sua Mariquinha e sendo cuidado de perto por ela, até os noventa anos.

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