segunda-feira, 6 de julho de 2020

O rebojo




Desde muito pequena ouço as pessoas falarem sobre rebojo e formava um conceito bem equivocado do que, realmente, se trata.
Imaginava, talvez pelo som da palavra em minha mente, que se tratasse de uma mudança brusca da direção do vento. Somente após minha visita à casa do Alfredo pescador e sua esposa Carmélia é que tomei conhecimento do real significado da palavra.
O que é um rebojo, mesmo? Trata-se de um vento muito forte, fortíssimo que causa pânico entre os homens do mar. Atualmente, a tecnologia, que já chegou às canoas, auxilia os pescadores artesanais e ninguém se aventura no mar quando a meteorologia anuncia esses ventos fortes. O rebojo. Mas nem sempre foi assim.
Eu era apenas uma criança e, quando acompanhava meu pai para comprar peixe, observava curiosa a movimentação no porto das canoas. Causava-me grande admiração o fato de os pescadores conseguirem se equilibrar com tanta destreza naquele piso em V do fundo das canoas e ainda remar, pois nesse tempo não havia motor para impulsionar a embarcação. Chegavam à praia e saíam com facilidade. Refiro-me às canoas maiores um pouco mais seguras, mas havia lá um senhorzinho, o seu Tomazinho, barba comprida e cabelo pelos ombros, ambos já totalmente brancos, cuja embarcação era mínima. Mal cabia ele dentro. E aportava na areia, a remo, trazendo o produto de seu trabalho em alto mar, utilizando-se apenas daqueles parcos recursos. A minha memória ainda registra a cena dele, aquela figura pequena e ímpar, chegando na praia. Às vezes, acontecia de pescar mais mangonas, uma espécie de tubarão de um metro e meio, mais ou menos, do que seu pequeno barco podia conter e precisar amarrar os pescados para fora da pequena embarcação e vir puxando os peixes enormes pela água. Alguma semelhança com o velho e o mar do Hemingway? Ele nunca chegou a saber quem eu sou, mas eu não o esqueço. 
Pois bem. Conversando com meu amigo Alfredo sobre minha admiração pela valentia do senhor Tomazinho, ele me interpelou dizendo que, antes dele, houve outro pescador, também velhinho, mais valente ainda. O seu Manduca. E passou a me contar uma história fantástica que envolveu esse valente pescador e o seu Antônio Domingos, avô do Célio, o domador de ondas, sobre quem já escrevi aqui neste espaço de lembranças.
Estavam os dois personagens citados pescando mais para o norte, nas ilhas Tamborete, de onde traziam muito peixe já meio processado, pronto para ser armazenado até, se fosse preciso, quando perceberam a aproximação de um rebojo, vindo do sul. Diante do perigo iminente, recolheram rapidamente seus petrechos e rumaram sem demora de volta para casa. Mas estavam longe e a tempestade formada por aquele vento intenso os surpreendeu quando passavam pela boca da barra do rio Itapocu. Seu Manduca não viu outra alternativa. Rumou a embarcação para entrar rio adentro e alcançar as águas mais tranquilas da lagoa formada por aquele estuário. As ondas que se formavam no mar naquele momento eram apavorantes e o esforço para se manter sem naufragar era intenso. O velho pescador no leme lutando pela sobrevivência de ambos só gritava para seu companheiro Antônio. “Rema e não olha para trás! ” Tente o leitor imaginar o pavor que o tomaria se o fizesse. Vagas enormes a persegui-los muito de perto. Felizmente conseguiram vencer essa força da natureza. Saíram ilesos da aventura contra o rebojo.
Cabe aqui a informação de que, nesse tempo, 90% dos pescadores não sabia nadar. Entravam no mar movidos pela necessidade de sobrevivência e valentia pura.

  

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O antigo cemitério da lagoa de Barra Velha




Há algum tempo eu vinha querendo escrever sobre esse local que em mim exercia um fascínio sem explicação, mas detinha pouco, ou quase nenhum, conhecimento sobre ele. Até um dia em que uma querida sobrinha me falou sobre uma dissertação de mestrado realizada na Universidade da Região de Joinville que versava sobre o antigo cemitério. Enviou-ma e hoje posso discorrer sobre o assunto com bastante propriedade. A autora dessa preciosidade é minha amiga e conterrânea Angelita Borba de Souza, que fez uma profunda e séria pesquisa ao fazer seu mestrado, sob o nome de: Um patrimônio cultural em conflito. Muito agradecida e devidamente, autorizada pela autora da dissertação, hoje dou início a minha crônica.
A origem do nome, Barra Velha, tem várias explicações, mas, a mais corrente e viável, no meu entender, é aquela que Saint Hilaire cita em seus apontamentos, por ocasião de sua passagem por estas paragens há muito, muito tempo atrás. A barra do rio Itapocu, que dá origem à lagoa, antigamente situava-se na ponta da lagoa, onde hoje existe uma praça, mas se deslocava frequentemente até se fixar, mais ou menos, onde hoje se encontra. E o local ficou, então, conhecido com esse nome. Barra Velha não tem uma data fixada de quando teria começado a sua ocupação. Anotações dão conta de que caçadores e exploradores, de passagem por estas bandas, teriam aqui se fixado já nos séculos XV e XVI. Anteriormente este território era ocupado por índios Guaranis. Açorianos chegaram a partir do século XVIII. Iniciou-se, então, um povoado, um vilarejo de pescadores que se utilizava da lagoa aqui existente e do mar para a sua sobrevivência. A lagoa, além de garantir a sobrevivência das famílias dos pescadores, servia também para deslocamento entre vilas e era navegando por ela que eram conduzidos os mortos para a despedida final.
Atualizo a localização do antigo cemitério, para facilitar a compreensão do leitor. Situa-se às margens da lagoa, no bairro Quinta dos Açorianos, em Barra Velha, bem próximo a uma ponte pênsil ali construída. Cumpre informar que esse bairro existe porque seu território foi totalmente loteado para dar vazão à especulação imobiliária. Inclusive a construção da tal ponte teve a intenção de atrair turistas e fomentar o comércio dos lotes. Foi construída pela iniciativa privada em troca de tributos devidos. O espaço do antigo cemitério encontra-se entre esses inúmeros lotes. Até uma tentativa de aterramento do mesmo já foi feita por ocasião da dragagem da lagoa. A areia retirada começou a ser depositada ali com a intenção de fazer sumir qualquer vestígio que pudesse lembrar que um dia ali foram enterrados corpos de entes queridos, nossos ancestrais e, por certo, viabilizar a comercialização deste também. Felizmente o bom senso de alguns conseguiu embargar esse absurdo.
Barra Velha não possuía cemitério nos primórdios de sua existência. Seus falecidos eram enterrados em Armação (Penha) até, provavelmente, o final do século XVIII, pois há registro do primeiro enterro em janeiro de 1791. Considerado oficialmente como cemitério a partir do ano de 1800, passou a atender as populações de Barra Velha, a população ribeirinha, o Balneário Barra do Sul e Penha.
 No século XVIII começaram a surgir, na região, as epidemias. A denominada Câmara de Sangue (diarreia hemorrágica) vitimou muitos moradores. Sem assistência médica, a febre amarela e a varíola também fizeram vítimas. Meu livre pensar me faz concluir que esse fato foi o grande disparador para que se encontrasse um local adequado, muito longe da população, para enterrar os mortos em Barra Velha vítimas dessas doenças altamente contagiosas e que as autoridades de Penha impediram os enterros em seu cemitério também por medo do contágio. Os escritos de Angelita levaram-me a essa conclusão.
O cortejo era feito em canoas e, quando o falecido tinha uma estatura maior, era necessário que se amarrasse o caixão transversalmente em duas canoas e a navegação feita com todo o cuidado possível. Outras embarcações iam atrás levando familiares e amigos em meio a velas, flores, cantorias e muita tristeza no coração, por, aproximadamente, quatro quilômetros a remo. Mais tarde foi confeccionada uma canoa maior, a chamada defunteira. Era a canoa funerária que, pintada de preto, ficava ancorada às margens da lagoa aguardando a utilização.
Serviço funerário? Nem pensar. Os familiares e amigos providenciavam mortalha e caixão. Havia dois possíveis trajetos de acesso ao cemitério. Pelas águas da lagoa, ou pela praia da península, de carroça, e, na altura do cemitério, se fazia a travessia da lagoa. Em ambas as alternativas, a atuação do pescador se fazia absolutamente necessária. Havia dificuldades com o clima. Vento, frio e chuva traziam transtornos, tanto no transporte, como na abertura da cova, que era feita pelos próprios acompanhantes do féretro. Em tempos de chuva, abrir uma cova na beira da lagoa, fazia surgir água, havendo necessidade de abrir outra em outro local próximo.
Esse cemitério foi desativado em 1929 com a construção de outro no centro da vila. Provavelmente dada a dificuldade para se enterrar um ente querido, os moradores do local não se opuseram à transferência do cemitério da lagoa para o centro, embora haja registros de enterros feitos ali até 1938. Talvez por apego ao local, respeito aos antepassados e o não pagamento de taxas para realizar o enterro. Muitos corpos foram transladados para o novo cemitério. Outros tantos ainda permanecem lá.
Em minha próxima crônica vou abordar as inevitáveis histórias de fantasmas e terror originadas pelo cemitério da lagoa.


Observação importante. Para quem estiver interessado em fazer uma deliciosa leitura desse intrigante assunto, com detalhes, a dissertação de mestrado de Angelita encontra-se na biblioteca da Universidade da Região de Joinville.

domingo, 7 de junho de 2020

Ainda sobre livros




Acredito que todas os leitores compulsivos trazem esse gosto, essa tendência consigo ao nascer. Despertar e fazer crescer dentro de nosso ser o gosto pela leitura é um privilégio, creio, de poucos.
O lugar maravilhoso onde nasci oferecia a seus moradores, uns poucos veranistas e outros tantos visitantes uma natureza farta e exuberante em beleza, mas os recursos, em se tratando de educação, eram muito precários. Por conta disso, minha irmã e eu, aos 11 e 13 anos, tivemos que dar continuidade a nossos estudos em uma cidade próxima, Jaraguá do Sul, onde existia um internato de freiras alemãs da Ordem da Divina Providência. Logo nos primeiros dias, fazendo o reconhecimento do local, fui apresentada à biblioteca. Qual não foi minha alegria, espanto e admiração ao encontrar uma sala, cujas paredes eram cobertas por estantes lotadas de livros de todas as espécies. Nunca poderia imaginar que realmente existisse, de verdade, todo aquele tesouro. E, claro, virei “rata” de biblioteca. Ao longo de minha permanência no colégio devorei toda a obra ali disponível de M. Delly, romances para adolescentes que eu julgava serem escritos por uma mulher e somente há pouco tempo vim a saber que aquele M. não era de Madame. Esse era apenas o pseudônimo de um casal e escritores franceses. Fiquei triste, decepcionada. Estava certa de que quem escrevia aquelas lindas histórias que povoavam meus devaneios de adolescente romântica era uma amável senhora com os cabelos grisalhos atados à nuca. Ai... a imaginação fértil da garota sonhadora que fui um dia.
Nesse mesmo tempo e espaço, li quase toda a obra de José de Alencar com o qual me identifiquei muito, embora lírico e muito descritivo. Para mim aquela era a sala da magia e esse autor me conduzia a cenários inimagináveis, bem fora da realidade de então.
Tenho bastante simpatia por autores estrangeiros como Gabriel Garcia Marquez, Isabel Allende ou Ernest Hemingway, só para citar alguns, mas, como autêntica patriota ufanista até, meu interesse fica totalmente voltado para a maravilhosa literatura brasileira.
Uma obra lida que se destaca entre todas é Grande sertão: veredas, escrita por João Guimarães Rosa. Não tenho o hábito de reler os livros que leio, mas a leitura desse me foi tão prazerosa que, após ler a última frase da obra, voltei para a primeira página e iniciei a releitura imediatamente. O melhor de todos, sem dúvidas!
Outra obra, cuja leitura deixou marcas foi O cortiço de Aluísio de Azevedo. Ainda trago comigo os personagens mais marcantes dessa narrativa: Rita Baiana e João Romão. É bem provável que essa seja a minha próxima releitura.
E o que falar de Jorge Amado, cuja fase engajada politicamente lhe rendeu suas melhores obras. Capitães da areia é um belo exemplo disso. Pedro Bala, João Grande, Pirulito, Sem Pernas e os outros dão aulas de ética quando juntos ou individualmente, por mais paradoxal que possa parecer, por serem eles, os capitães da areia, um grupo de menores delinquentes. O autor manobra seus personagens de maneira sutil, às vezes nem tanto, e faz sua contundente crítica social. Não se pode dizer, no entanto, que suas obras da fase mais, digamos assim, comercial, não proporcionem momentos de delicioso entretenimento. Em todas há sempre, pelo menos, um personagem passando grandes lições de civismo e cidadania.
Érico Veríssimo, que conheci quando já mais madura, conseguiu me arrebatar com sua narrativa forte e tantas vezes misturada à realidade, sobretudo, política.
E aí vão tantos outros, não menos importantes e arrebatadores. Se me alongo mais, torno a leitura enfadonha e prezo muito os meus queridos leitores. Pretendo voltar ao assunto, sempre que me sentir empolgada.



domingo, 24 de maio de 2020

Leitura - uma preciosa ferramenta




Era apenas o início de 1950 quando vim ao mundo, pelas mãos de dona Maria Bastião, a bondosa parteira negra, cuja marcante característica era o pano branco, branquíssimo, amarrado à cabeça, para conter os cabelos rebeldes, e também a maestria com que exercia seu importante ofício na pequena aldeia de pescadores, localizada no litoral norte de Santa Catarina. Barra Velha.
Um universo deveras restrito, um canto do mundo isolado de tudo. Era rota de apenas uma linha de ônibus, que passava pela manhã da cidade de Itajaí, ao sul, com destino a cidade de Joinville, ao norte, de onde retornava no meio da tarde. Era a única forma de comunicação com o mundo. Lembrar dessa realidade, hoje, me dá a real dimensão de todo o progresso e avanço tecnológico que me foi permitido acompanhar desde então. Esse preâmbulo serve para introduzir e dar mais força para a história que vou escrever.
Meus irmãos mais velhos, sou a caçula, já frequentavam a escola, liam e sabiam muito mais coisas do que eu. Não via a hora de, pelo menos, saber ler também. Era tempo de “decoreba” e meus irmãos estudavam alto e bem cantado. Consequência disso, quando cheguei à escola, já havia decorado a tabuada, os estados e capitais do Brasil etc.
Enfim, dona Aventina Vailatti dos Passos, minha professora do primeiro ano escolar, no Grupo Escolar Pedro Paulo Philipe, ensinou-me a ler. E, daí por diante, não parei mais. Hoje, passadas mais de seis décadas, ainda sou uma ledora compulsiva e voraz. Esse grupo escolar possuía apenas duas salas de aula. Prova inconteste de que ninguém precisa de grandes estruturas quando deseja aprender.
Meu pai e grande incentivador da nossa cultura, frequentemente viajava para Joinville a negócios e de lá nos trazia livros, revistas, gibis e coleções como Diversões Escolares e Nosso Amiguinho. Era o nosso Google hehehe.
Entre os gibis, trazia-nos todos os da Disney, Bolinha, Luluzinha e outros que encontrasse. Maurício de Souza despertava seu talento para o desenho nessa época.
O comércio varejista de Barra Velha nessa época, para nós, eram a “venda” da dona Judite e da dona Madalena. Mas eu via, no gibi, a Luluzinha andar com um carrinho em meio a prateleiras cheias de produtos de todas as espécies e não entendia nada. Muito tempo depois vim a perceber que eram os supermercados. Eles já existiam nos Estados Unidos, onde a Luluzinha morava. E eu pude conhecer muito tempo antes por meio da leitura. Um exemplo banal, mas tente transportar isso para algo relevante e verá o quanto tenho razão.
Minha melhor professora de Português foi uma freira da ordem da Divina Providência, a Irmã Cléa. Ela veio da Alemanha com a família e se instalaram todos num sítio afastado, onde tinham medo de receber pessoas estranhas por não saberem falar o idioma local. Ela, persistente, encontrou uma Bíblia em português e comparando os textos com sua Bíblia em alemão conseguiu aprender a língua da nova pátria. Valorizo isso sobremaneira, uma vez que ainda encontro pessoas falando alemão em público, bem alto e bom som, sem ao menos terem nascido lá. Penso que, por respeito ao país que os acolheu, devessem falar sua língua de origem apenas na intimidade de sua família. No caso da freira, a leitura serviu não só de importante meio de comunicação entre ela, a família e a comunidade, como fê-la tornar-se uma excelente divulgadora da língua portuguesa.
Queria ter muito mais tempo para ler. Fico triste quando observo pessoas dando tratos ao ócio, quando poderiam ocupar seu tempo com boas leituras. Trar-lhes-ia um benefício incalculável. Pena...
Por outro lado, causa-me uma grande sensação de bem estar a certeza de, ao longo da minha carreira profissional, ter conquistado muitos bons leitores.
Costumo repetir que, quem não sabe é como quem não vê. Isto é, a ignorância causa cegueira. Uma boa leitura não apenas combate como também neutraliza esse mal terrível que é a ignorância.
Sabe-se que 95% do conhecimento humano está nos livros. Cabe-nos aproveitar, divulgar e conquistar mais e mais leitores para o bem da humanidade. Uma importante ferramenta que não pode ser desprezada.








domingo, 8 de março de 2020

Um domador de ondas




Penso que as pessoas que costumam ler meus escritos já perceberam minha predileção por temas que envolvem minha terra que também é a terra de parte dos meus ancestrais. Mais especificamente, gosto de enaltecer os feitos dos valorosos pescadores artesanais desta praia maravilhosa.
Com a devida permissão do próprio personagem da história de hoje, um descendente de família muito conhecida da minha, vou discorrer sobre o pescador Célio de Oliveira. Um improvável domador de ondas.
Digo improvável porque, em um determinado momento de sua vida, precisou lutar bravamente com a morte. E venceu!
Um câncer violento e agressivo consumiu-lhe as entranhas, obrigando a que os médicos precisassem lhe retirar praticamente todas as vísceras. Estômago, vesícula, baço e boa parte do intestino foram extirpados para lhe permitir a sobrevida. Chegou a pesar menos de 50 kg no período de sua recuperação. Mas venceu. E voltou à vida mais forte e valente do que nunca.
Lembro de tê-lo visto no porto das canoas há muito tempo. Usava um gorro de lã com as pontas enroladas para cima. Para mim, parecia saído de um livro do Hemingway.
Desde que voltei para morar definitivamente aqui, a base da minha alimentação passou a ser peixe pescado pelo Célio. Tenho uma grande admiração pela pessoa desse rapaz antes de saber de sua grave enfermidade porque, mesmo a despeito de todas as adversidades, sai todas as noites para pescar sozinho e, ao voltar para a praia, fica ali vendendo, ele mesmo, o produto de uma noite de batalha com o mar imenso. Não entrega seu pescado para atravessadores, que sequer molham os pés na água do mar, comercializarem. Desse modo, tenho peixe fresquinho sempre que desejo. Minha gratidão ao Célio por isso.
Por duas vezes já, e espero que sejam muitas mais, tive a ventura e o privilégio de vê-lo chegar ao porto das canoas.
Foram dias de mar agitado e ele chegava um pouco mais tarde, para minha sorte. Grandes ondas o esperavam na chegada. E lá vem ele, com sua canoa azul de nome Yoko, sozinho, fazendo das cordas do leme verdadeiras rédeas, a domar aquelas vagas ameaçadoras. Manobrava sua canoa como se fora um corcel a ir e voltar, sem medo de sucumbir.
Ao final, desconsiderando qualquer perigo, o grande vencedor do duelo permite que a onda vencida o traga suavemente para a margem.
Se não fosse por outras incontáveis vantagens de morar neste lugar, apenas o fato de poder assistir a cenas como essas já me teriam feito valer a pena viver neste pequeno pedaço do paraíso.




domingo, 16 de fevereiro de 2020

Sobre a importância de ser grato




Na minha família de origem somos seis irmãos. Desses, os três primeiros constituem a primeira etapa. Duas mulheres e um homem, denominados os três mais velhos. Houve então um intervalo de quatro anos, por conta de uma complicada debilidade física de meu pai, uma doença grave que forçou a família a vir morar na praia e que teve como consequência a necessidade de um longo período de recuperação. Recuperado, voltou à carga na produção da prole e viemos nós, os três pequenos. Um homem e duas mulheres, dos quais sou a última.
Minha irmã mais velha permaneceu em Joinville morando com a avó Isabel. A segunda, a Suely, será a personagem principal desta história que hoje escrevo. Ela, de vez em quando, dispara pérolas de suas lembranças, como a conversa com a nossa avó Antonica, quando essa lhe revelou que a propriedade da família Moura ia até onde hoje é mar e que a laje de pedras que se pode avistar, no mar, longe da praia, nesse tempo ficava bem pertinho. Achei bem interessante essa informação. Imagino que até haveria condições de brincar por lá. Muito bom! E outras tantas lembranças que merecerão um texto só para elas.
Neste momento quero me reportar a uma revelação feita sem intenção de provocar nenhum sentimento mais intenso, mas me leva às lágrimas toda vez que me vem ao consciente.
Contou a Suely: Entrava o ano de 1950 e minha mãe se via envolvida com os preparativos para a chegada do seu sexto bebê. Paralelo a isso, a Tute, como carinhosamente chamamos a Suely, enfrentava problemas de saúde frequentes no tempo em que estudava no grupo escolar em Barra Velha, a ponto de a professora d. Belinha, que provavelmente enxergava muito mais do que seus olhos lhe mostravam, aconselhou meus pais a tirarem-na da escola. Para não ficar sem estudos, lá foi ela estudar em Joinville, no colégio Conselheiro Mafra, morando com a avó Isabel. Tanto d. Belinha tinha razão que minha irmã sempre se destacou nos estudos por lá. Prêmios e homenagens durante todo o ano.
Chegou o final do ano letivo. Tute foi sagrada a melhor aluna de todo o colégio. Haveria uma festa no dia seguinte para entrega de prêmios aos destaques do ano e ela receberia dois prêmios, mas não pode comparecer. A avó Isabel foi quem a representou e recebeu os prêmios. Meu pai chegara de Barra Velha com a missão de levá-la de volta para casa, pois minha mãe, cheia de afazeres com costuras que fazia para ajudar no orçamento da casa, precisava dela para ajudar com os três menores. E a Tute passou a ser a nossa IRMÃE.
Nunca vou conseguir vestir com palavras a imensa gratidão que tenho por essa criatura tão especial. Se não tivesse vindo mais um bebê, minha irmã teria dado continuidade aos seus estudos tão promissores. Esse bebê empecilho sou eu.
Aquela que passou por momentos de Gata Borralheira e Polyana, aos oitenta anos, a mais longeva da família, aí está a zelar pelo marido, filhas, netos e bisneta.
Minha alma não teria paz enquanto eu não registrasse o meu mais profundo agradecimento para essa criatura tão especial.
MUITO OBRIGADA, MINHA IRMÃE!



segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Transmitir conhecimento - uma questão de genética


               

Era uma tarde de clima agradável quando resolvemos, minhas irmãs Graça, Suely e eu, fazer uma visita ao senhor Moacyr Borba que, aos 93 anos, ainda detém uma memória invejável. Parece visualizar cada acontecimento relatado. Momentos muito agradáveis passamos na sua companhia.
Essa visita veio a confirmar algo de que tínhamos desconfiança, mas não certeza. A vocação para os misteres do magistério, esse verdadeiro sacerdócio, tão presente em tantos membros da família, especialmente o tronco Moura, tem seu início em tempos remotos de nossa ancestralidade.
Relatou-nos o senhor Moacyr que, em algum período do século XIX, era professor em Barra Velha, o primeiro do local, o senhor Manoel da Silva Quadros, avô do senhor Jânio da Silva Quadros, personagem da história de nosso país por ter sido um de seus presidentes no início dos anos 1960.
Houve por bem que esse ilustre cidadão de nossa comunidade fosse convocado para exercer a Exatoria do município de Parati, mais tarde denominada, Araquari. Nesse momento, entra em ação a primeira professora da família de quem se tem notícia, também a primeira professora destas paragens de Barra Velha. A partir daí nem tenho condições de quantificar o número de professores na família, muitas vezes nem o sendo por formação, mas por paixão ou apelo do sangue.
Com a convocação do senhor Manoel da Silva Quadros para a função de Coletor em Araquari, foi nomeada pela Província de Florianópolis, ninguém menos do que minha avó, Antônia Higina da Graça Moura para o substituir na função de professora formada, advinda de São Francisco do Sul.
Não era sem orgulho que meu pai nos relatava a lembrança de ver a sua mãe saindo a cavalo para exercer sua tarefa de educadora. Sentada na cela, de lado, a saia cobrindo boa parte do animal. Essa cena parece se materializar em minha mente.
A escola situava-se na, hoje, praia da Península, entre o mar e a lagoa. Pelo menos uma das filhas da minha vovó Antonica também exerceu o magistério por aqui. Meu pai sempre foi envolvido com as coisas da educação em Barra Velha enquanto estudávamos na antiga Escola Reunida Pedro Paulo Philipi.
Anos mais tarde, minha avó foi homenageada pelo município. Foi dado o seu nome a uma escola, na localidade de nome Pedras Brancas, bem próxima do mar. Houve uma ocasião em que o Exército e a Marinha Brasileiros executavam treinamento nas proximidades, a escola foi agraciada com farta doação de material. Livros, cadernos, mapas e até alimentos.
Meu avô, José Antônio Lopes de Moura, o popular Zé Lopinho, não era professor, mas cabe dizer que foi nomeado pelo Governo da República como supervisor das obras da ferrovia de São Francisco do Sul, que tinha por finalidade escoar a produção agrícola e fabril da região para o porto localizado ali.
Não existem registros, mas minha imaginação me conduz para a possibilidade de Antonica e Zé Lopinho terem se conhecido e se apaixonado nesse tempo. Ah... o Cupido! Trouxe-nos a vovó e Barra Velha ganhou sua primeira professora.





domingo, 26 de janeiro de 2020

A visita




É do conhecimento de todos o caos moral que se abate por sobre a humanidade neste momento.
Ao mesmo tempo em que a tecnologia avança assustadoramente, trazendo ao ser humano conforto e facilidades em todos os setores, a maldade se avoluma e toma conta, proporcionando infortúnios de toda espécie entre as pessoas do mundo inteiro.
No entanto ainda existem oásis, verdadeiras bolhas de paz e harmonia muito perto de nós. Ontem fui à casa de um pescador, de quem sempre compro camarão na praia, para fazer uma visita a ele e sua família. Trata-se do Alfredo Albino Heins e de sua esposa Carmélia. Fui também em busca de histórias vividas por ele no mar, que, oportunamente, contarei aqui.
Foi uma tarde encantadora no seu sentido mais literal. Encontrei naquela casa pessoas de sentimentos puros, que deixam transparecer todo um interior de educação, respeito e bem querer, por tudo e por todos, que não se encontra mais por aí em qualquer esquina. Como me senti bem naquele ambiente de paz. Lamentei estar ali sozinha. Desejava que todos os meus queridos estivessem comigo.
 A Carmélia, que é filha do sr. João Lourenço, amigo de meu pai em outros tempos, gentilmente me ofereceu um café delicioso. E tomamos aquele café regado a uma conversa também deliciosa.
Não é exagero nenhum dizer que saí dali revigorada. Acreditando que neste mundo ainda existem pessoas que valem a pena. 
Nem tudo está perdido como tanto proclamam os noticiários da TV. Ainda há pessoas muito puras que podem e vão semear para o bem e, quando essas sementes germinarem, teremos paz, alegria, harmonia e muito amor entre nós. Quem viver com fé, verá.

domingo, 19 de janeiro de 2020

O Costão dos Náufragos




Aconteceu na segunda metade do século XIX a maior contenda entre países da América do Sul. Foi a chamada Guerra do Paraguai, onde esse país entrou em confronto com os países da Tríplice Aliança, composta por Brasil, Uruguai e Argentina.
Por conta dessa guerra, tropas brasileiras da Paraíba dirigiam-se, por mar, para reforçar as tropas aliadas contra o inimigo. Ao passarem, em alto mar, por Barra Velha, foram surpreendidos por uma tempestade que os fez sucumbir. Os marinheiros, impelidos pelo instinto de sobrevivência, tomaram os escaleres e rumaram para a costa.
Era um mês de junho e os moradores da, então, aldeia de pescadores haviam acendido uma fogueira para os festejos comuns da época e os náufragos avistaram, do mar, o clarão do fogo. Interpretando como um sinal evidente de terra próxima, para ali rumaram. Não é difícil imaginar a alegria e felicidade de que ficaram possuídos naquele momento.
Foi de comum acordo que se propuseram, caso chegassem à praia sãos e salvos, erguer um Cruzeiro em sinal de agradecimento pela proteção recebida.
O pedido foi ouvido pelo Poder Maior e acabaram aportando no costão da praia de Barra Velha. Todos se salvaram e foram acolhidos, alimentados e aquecidos pelos moradores do local. Ficaram aqui por algum tempo e depois seguiram seus destinos. Consta que alguns deles permaneceram por aqui. Registros históricos dão conta da gratidão desses náufragos para com os locais que os acolheram. Foram muito bem recebidos.
O Cruzeiro prometido pelos náufragos foi erguido e até hoje permanece no local onde tiveram o primeiro contato com terra firme. É o nosso Costão dos Náufragos.
Naturalmente cabe uma pesquisa mais profunda sobre o fato. Nossos historiadores locais, por certo, terão detalhes sobre o destino desses sobreviventes e que famílias locais descendem daqueles que aqui permaneceram.
A promessa agora é minha. Vou procurar me informar para, em outro momento, aqui registrar as consequências desse fato importante.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Uma grande prova de coragem




Tenho alguns amigos de infância que são pescadores artesanais em Barra Velha. Hoje relato aqui um acontecimento que envolveu meu amigo Roberto. Eu assisti pessoalmente e fiquei muito emocionada.
Antes de relatar o fato, preciso dizer que Roberto tem bem mais de 70 anos de idade, um problema sério de pele na perna, que já o levou ao hospital e sua coluna tem uma curvatura constante de mais ou menos cento e vinte graus. Ainda sai todas as noites, ele e um companheiro, a enfrentar o mar para de lá trazer o pescado.
Aconteceu nos primeiros dias logo que voltei a morar definitivamente aqui em Barra Velha.
Estávamos vivendo as primeiras horas da manhã e eu caminhava pelo Costão dos Náufragos em direção ao porto dos pescadores. O final de uma forte ressaca no mar ainda fazia com que as ondas tornassem a chegada das canoas ao porto bastante arriscada.
Por isso, os pescadores aguardavam ao largo até o momento oportuno para chegar à praia com segurança. Meu amigo Roberto, ao largo, a espera de uma calmaria, controlando o leme e o motor, optou por aportar o seu barco.
Nesse momento ele se viu surpreendido por uma enorme onda atrás do barco. Eu ali, assistindo tudo, fiquei muito apreensiva com o desfecho que poderia acontecer. Mas o valente pescador, e esses podem ser denominados de valentes mesmo, não titubeou em nenhum instante. Esperou a enorme onda se acercar de sua embarcação e, no momento exato, alinhou a canoa, acelerou o motor e, suavemente, surfou a onda com a canoa, companheiro, todos os seus equipamentos e o produto de uma noite de pesca em mar bravio e conseguiu chegar à areia em segurança. Chorei. Corri até a praia, abracei meu amigo e aproveitei para pedir autorização para escrever essa sua aventura aqui. Ele dizia somente:  “Não é fácil! ”
Não escondo de ninguém a minha admiração por essas pessoas que enfrentam o mar todas as noites como profissão. Os pescadores artesanais. Valorosos e corajosos como poucos.
Melhor pensar duas vezes antes de pechinchar o preço do pescado ao comprar na canoa.




Aqui, um esclarecimento


                                              

Antes de retomar meus escritos, cumpre-me esclarecer a todos os leitores deste veículo que sou, única e tão somente, uma contadora de histórias e que os textos que aqui publico não têm status de documento.
 Faço, portanto, um alerta. Meus escritos não devem ser utilizados como fonte de pesquisa, pois não são documentos históricos. Deixo esse compromisso para os nossos historiadores que sabem fazê-lo com propriedade e competência.
Sim. São crônicas baseadas em fatos reais. São histórias que ouço por aí e as repasso com temperos gerados na minha alma nativa. Recebem sabores e tintas que as fazem mais agradáveis ao leitor.
Espero que gostem dessa nova fase onde darei prioridade aos contos do meu canto. Da minha tão amada Barra Velha.